O
estranhamento causado
pela
deficiência
O
estranhamento causado pela deficiência são importantes referências
para a compreensão do sentido moderno de tolerância, pois
esclarecem seus elementos fundantes na ideia da diversidade e da
identidade.
O
autor sintetiza tais referentes da seguinte forma:
A
Carta de Locke e o Tratado de Voltaire parecem evidenciar duas linhas
de fundamentação filosófica do valor tolerância na modernidade.
A
primeira, o empirismo, vê na cultura, e não na natureza humana, as
características fundamentais do ser humano.
Não
existe uma sociedade humana única, pois muitas são as culturas
historicamente construídas.
Seguindo
a tradição cética, o empirismo afasta-se da verdade universal,
enquanto identidade metafísica, para buscar na necessidade da
convivência social com o diferente a justificativa para o
comportamento tolerante.
Uma
sociedade racionalmente evoluída é aquela cujas bases fundam-se em
um contrato de convivência, onde todos são livres para expressarem
suas posições, tendo assegurado o bem comum.
Na
segunda vertente, fundada no racionalismo, o valor tolerância é
construído sobre as bases da tradição metafísica.
Em
outras palavras, Voltaire extrai da própria natureza do ser humano
os argumentos a favor da boa convivência.
Não
se trata de aceitar o outro pelo respeito àquilo que temos de
diferente: a cultura ou as idiossincrasias, mas por nossa
identificação mútua como seres humanos.
(Cardoso,
[s.d.], p. 1)
A
partir do século XIX, a tolerância já estava totalmente
desvinculada do seu sentido religioso, porém com um significado tal
como ainda encontramos nos dicionários: tolerar como consentimento
tácito de suportar ou agüentar, revelando a ideologia do
colonizador no seu projeto de dominação.
Nos
últimos anos, tolerância tornou-se quase uma palavra de ordem nos
diversos eventos e publicações, indicando o exercício necessário
em favor das diferenças e contra qualquer cerceamento do pensamento,
ou uma espécie de valoração positiva que se invoca em momentos de
conflitos.
Em
1995, na sua Conferência Geral em Paris, a Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) aprovou a
Declaração de Princípios sobre a Tolerância, e em 1997 realizou
na Sorbonne o Foro Internacional sobre a Intolerância, que resultou
na publicação, pela Academia Universal de Cultura, do livro A
intolerância, com textos de Umberto Eco, Paul Ricoeur e Jacques Le
Goff, entre outros.
Entretanto,
é preciso lembrar que, numa sociedade que convive com desigualdades
intensas, a tolerância parece seguir sempre um movimento linear, de
mão única.
Recorrer
a esse argumento, iludindo-se com a pretensa igualdade de todos numa
sociedade injusta, atesta poucas possibilidades de convencimento ante
uma “igualdade abstrata”, em dado momento, pode ser vista com uma
postura de superioridade, e não como atitude transitória em direção
ao verdadeiro reconhecimento:“ eu te suporto, porque sou generoso”.
Torna-se
uma aceitação com reticências, uma licença condescendente às
particularidades, como se fosse uma deferência ao outro.
Com
esse entendimento, existe um limite para tolerar-se, e a fronteira
para isso está no que pode ser aceitável ou o que não mais é
considerado saudável.
A
intolerância seria uma forma de imputar culpa aos que não souberam
controlar os riscos que os tornaram diferentes.
Ora,
como existe um valor para um padrão de beleza, saúde, qualidade de
vida, autocontrole, entre outros, os que se distanciam desses alvos
devem ser punidos por tal negligência.
A
intolerância torna-se uma agressividade irracional contra formas de
ser e estilos de vida contrários aos que se convencionou, por
escolha ou (pseudo)formação, como absolutamente verdadeiros.
Rouanet
(2003, p. 11) afirma que tolerância deve ser um caminho, não um
fim:
“ A
implantação de uma cultura da tolerância é um cessar-fogo na
guerra das
diferenças,
mas ainda não é a paz.
As
diferenças não devem ser apenas toleradas, porque do contrário
elas se reduziriam a um sistema de guetos estanques, que se
comunicariam apenas no espaço público”.
Marcuse
(1970, p. 102), em ensaio sobre o significado de tolerância na
sociedade estadunidense, posiciona-se em favor de uma tolerância
partidária, pois que para ser um fim em si mesma requer uma condição
de universalidade, sob pena de servir “ à causa da opressão”.
O
autor dá um exemplo de tolerância desumana, ainda que
presumivelmente pautada no que se considera equivalente à
objetividade:
[...]
se um locutor de rádio descreve a tortura e assassinato de
propagandistas de direitos civis no mesmo tom sem emoção que usa
para descrever as flutuações do mercado ou as condições do tempo,
ou com a mesma grande emoção com que lê os comerciais, então tal
objetividade é espúria – mais ainda, ofende a humanidade e à
verdade porque se mostra calmo onde deveria ter-se enfurecido, e
porque se abstém de acusar quando a acusação ressalta dos próprios
fatos.
[...]
Se a objetividade tem algo a ver com a verdade, e se a verdade é
algo mais do que uma questão de lógica ou ciência, então esse
tipo de objetividade é falso, e essa espécie de tolerância é
desumana.
Marcuse
deixa clara a contradição entre a estrutura social e política da
sociedade e o princípio da tolerância que, sendo falsa e abstrata,
mais obsta do que promove a mudança ou desempenha a função pela
qual foi forjada pelos protagonistas liberais.
Já
Matos ([s.d.]) chama a atenção para um outro sentido de tolerância
que contraria a concepção conciliadora, quando entendida como
combate: “ Neste caso, tolerar é esforço para desfazer
ortodoxias, revelar a dessemelhança no que parece homogêneo, a fim
de que um possa ir ao encontro do Outro” (p. 1).
O
desejo de individualizar e diferenciação não se define por um
simples “ ideal do eu”.
Mais
que isso, pressupõe condições sociais para que o reconhecimento do
outro ultrapasse a simples relação interpessoal.
Mesmo
a ideia de igualdade pela distribuição de renda, por si só, não
garante o princípio de respeito às diferenças.
Assim,
igualdade e diferença são conceitos não excludentes, mas
interdependentes, que mantêm permanente interação.
A
igualdade na perspectiva da democracia liberal afirma-se pelo direito
de todos perante a lei, considerando que todos são livres e obedecem
às mesmas leis.
Sua
contradição efetiva está em que, como princípio, se contrapõe à
desigualdade real no que se refere à apropriação dos bens,
posicionamento no trabalho e distribuição material e espiritual dos
produtos da cultura.
Nesse
sentido, as diferenças tornam-se desigualdades nas quais os
indivíduos são negados entre os que se consideram iguais.
É
pertinente considerar a produção social dessa diferença, que
resulta em atitudes, preconceitos, estereótipos e estigmatização,
posicionando socialmente aqueles considerados diferentes como
cidadãos de segunda categoria.
A
convivência na diversidade não significa assumir a posição de
espectador passivo e tolerante.
O
pressuposto essencial está em admitir que cada indivíduo tem
direito de combinar experiências pessoais de vida com a
coletividade, imprimindo, todavia, uma identidade particular que
constitui sua individualidade.
É
importante reafirmar que esse direito se encontra impedido de ser
realizado na atual sociedade, que dispensa as singularidades
individuais.
A
conveniência do discurso da diferença expressa-se pela necessidade
de pacificação social naquilo que inquieta.
É
necessário harmonizar as relações com o outro marginal e estranho
para fortalecer a segurança e garantir minimamente a “ paz
social”.
Impedir
o conflito e a violência das relações sem superar as causas que
assim as configuram apenas forja uma aparência de sociedade
acolhedora e democrática, pois que a essência do conflito
irracional não é superada.
Este
tem sido o encaminhamento dado pela mídia, por meio de peças
publicitárias rentáveis, quando veicula mensagens mitigadoras das
relações multiculturais, convertendo-as em causas nobres, para
assim legitimar socialmente a convivência tolerante.
É
a ideologia prestando-se à defesa dos ideais liberais de igualdade e
fraternidade ao que é permitido na sociedade atual.
Os
alinhamentos propostos pelos mecanismos ideológicos criam
necessidades de consumo e de comportamentos sedutores para um projeto
exterior aos indivíduos e, por assim ser, não exercem a liberdade e
a autonomia.
Na
medida em que a pulsão pela vida está enfraquecida, o risco do
impulso destrutivo é uma perspectiva real de prevalência da
barbárie.
Nesse
processo, a ideologia revela, não mais oculta, levando as pessoas a
gastarem muito da energia que têm para esconder a percepção do
horror.
Essa
possibilidade custosa de que falam os autores não pode ser
contestada, pois que os processos de individualização e indiferenciação
são movimentos de tensão e conflito subordinados às relações de
poder.
Porém,
como afirma Zuin (1999, p. 118), “ o não presente não pode e não
deve se transformar num ausente”.
Falar
que a individualização é um projeto inviável nesta sociedade não
indica a impossibilidade de nela haver confrontos e conflitos que
podem, pela crítica iminente, desmascarar o caráter afirmativo do
real a partir da leitura do que é silenciado.
O
que ora se apresenta na sociedade contemporânea, vinda dos
movimentos sociais e por parte dos intelectuais que se põem em favor
de um projeto de humanização das relações sociais, é uma clara
intenção de criticar todo tipo de segregação mantenedora da
menoridade e heteronomia de seus membros.
Se
antes esse era um fenômeno justificado pela carência de condições
objetivas para superar tal situação, hoje não é mais acolhido
como argumento racional.
O
entendimento sobre diferenças como um componente da individualidade
remete-nos aos questionamentos sobre sua possibilidade nesta
sociedade, em que as relações continuam sendo de domínio e
expropriação que mais respondem a uma sobrevivência irracional.
É
importante reafirmar a dependência mútua da sociedade e do
indivíduo, para evitar o entendimento dessa reciprocidade como uma
abstração, como se fosse um conceito puro.
O
indivíduo não é um ser natural que se emancipa dentro dos limites
de si mesmo, uma vez que não é apenas uma entidade biológica.
A
auto determinação ocorre na medida em que, tomando consciência do
mundo, adquire consciência de si.
Assim,
o indivíduo concretiza-se na sociedade e por meio dela.
As
limitações para sua constituição pelos processos formativos da
atual sociedade, contudo, retiram a força da individualização,
reforçando a não diferenciação, que é a outra face do processo
de socialização.
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LUCIENE
M. DA SILVA, doutora em educação pela Pontifícia Universidade
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Pós-Graduação Educação e Contemporaneidade da mesma
universidade.
Publicações
mais importantes: com FALSARELLA, Ana Maria. Preconceito na escola
inclusiva (Presença Pedagógica , Belo Horizonte, Dimensão, v. 8,
n. 46, p. 96-106, jul./ago. 2002); com OLAVO, Antonio; PEREIRA,
Dirceu de Socorro; GUERRA FILHO, Sérgio.
Quilombos
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Apontamentos sobre as contradições da questão deficiência e
trabalho (In: ENCONTRO MINEIRO DE PSICOLOGIA SOCIAL DA ABRAPSO, 14.,
2005, Belo Horizonte.
Anais...
Belo Horizonte, 2005. 1 CD-ROM). Pesquisa em desenvolvimento:“ Um
estudo sobre o movimento em defesa dos direitos das pessoas com
deficiência: a atuação para a inclusão”.E-mail:
luciene@portfolium.com.br
Recebido
em janeiro de 2006 Aprovado em maio de 2006
Resumos/Abstracts/Resumens
O
estranhamento causado pela deficiência: preconceito e experiência.
Discute
as relações entre preconceito e deficiência.
Tomo
como referenciais fundamentais os estudos de T. Adorno e M.
Horkheimer sobre preconceito, além das contribuições de autores
como Lígia Amaral e José Leon Crochik.
Para
eles, o preconceito às pessoas com deficiência configura-se como um
mecanismo de negação social, uma vez que suas diferenças são
ressaltadas como uma falta, carência ou impossibilidade.
A
deficiência inscreve no próprio corpo do indivíduo seu caráter
particular.
O
corpo deficiente é insuficiente para uma sociedade que demanda dele
o uso intensivo que leva ao desgaste físico, resultado do trabalho
subserviente; ou para uma construção de corporeidade que objetiva
meramente o controle e a correção, em função de uma estética
corporal hegemônica, com interesses econômicos.
Nesse
sentido, todos nós nos distanciamos cada vez mais da autonomia e da
possibilidade de diferenciação, restando apenas a adaptação à
situação existente, que se constitui em um esforço para aceitar a
mentira necessária para a sobrevivência ou autopreservação.
Palavras-chave:
Diferença; preconceito; inclusão; deficiência; educação
especial.
Fonte: - www.scielo.com.br
Se houvesse uma acessibilidade adequada em nossas cidades como nas calçadas, comércio, shoppings, escolas, faculdades, universidades, transporte, hospitais e outros por onde os deficientes pudessem circular entre as pessoas, não haveria a estranheza e nem o preconceito das pessoas em relação a deficiência.
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