Acreditar em si mesmo

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domingo, 18 de junho de 2017

2ª Parte - O estranhamento causado pela deficiência.



O estranhamento causado
pela deficiência




O estranhamento causado pela deficiência são importantes referências para a compreensão do sentido moderno de tolerância, pois esclarecem seus elementos fundantes na ideia da diversidade e da identidade.

O autor sintetiza tais referentes da seguinte forma:

A Carta de Locke e o Tratado de Voltaire parecem evidenciar duas linhas de fundamentação filosófica do valor tolerância na modernidade.

A primeira, o empirismo, vê na cultura, e não na natureza humana, as características fundamentais do ser humano.

Não existe uma sociedade humana única, pois muitas são as culturas historicamente construídas.

Seguindo a tradição cética, o empirismo afasta-se da verdade universal, enquanto identidade metafísica, para buscar na necessidade da convivência social com o diferente a justificativa para o comportamento tolerante.

Uma sociedade racionalmente evoluída é aquela cujas bases fundam-se em um contrato de convivência, onde todos são livres para expressarem suas posições, tendo assegurado o bem comum.

Na segunda vertente, fundada no racionalismo, o valor tolerância é construído sobre as bases da tradição metafísica.

Em outras palavras, Voltaire extrai da própria natureza do ser humano os argumentos a favor da boa convivência.

Não se trata de aceitar o outro pelo respeito àquilo que temos de diferente: a cultura ou as idiossincrasias, mas por nossa identificação mútua como seres humanos.

(Cardoso, [s.d.], p. 1)

A partir do século XIX, a tolerância já estava totalmente desvinculada do seu sentido religioso, porém com um significado tal como ainda encontramos nos dicionários: tolerar como consentimento tácito de suportar ou agüentar, revelando a ideologia do colonizador no seu projeto de dominação.

Nos últimos anos, tolerância tornou-se quase uma palavra de ordem nos diversos eventos e publicações, indicando o exercício necessário em favor das diferenças e contra qualquer cerceamento do pensamento, ou uma espécie de valoração positiva que se invoca em momentos de conflitos.

Em 1995, na sua Conferência Geral em Paris, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) aprovou a Declaração de Princípios sobre a Tolerância, e em 1997 realizou na Sorbonne o Foro Internacional sobre a Intolerância, que resultou na publicação, pela Academia Universal de Cultura, do livro A intolerância, com textos de Umberto Eco, Paul Ricoeur e Jacques Le Goff, entre outros.

Entretanto, é preciso lembrar que, numa sociedade que convive com desigualdades intensas, a tolerância parece seguir sempre um movimento linear, de mão única.

Recorrer a esse argumento, iludindo-se com a pretensa igualdade de todos numa sociedade injusta, atesta poucas possibilidades de convencimento ante uma “igualdade abstrata”, em dado momento, pode ser vista com uma postura de superioridade, e não como atitude transitória em direção ao verdadeiro reconhecimento:“ eu te suporto, porque sou generoso”.

Torna-se uma aceitação com reticências, uma licença condescendente às particularidades, como se fosse uma deferência ao outro.

Com esse entendimento, existe um limite para tolerar-se, e a fronteira para isso está no que pode ser aceitável ou o que não mais é considerado saudável.

A intolerância seria uma forma de imputar culpa aos que não souberam controlar os riscos que os tornaram diferentes.

Ora, como existe um valor para um padrão de beleza, saúde, qualidade de vida, autocontrole, entre outros, os que se distanciam desses alvos devem ser punidos por tal negligência.

A intolerância torna-se uma agressividade irracional contra formas de ser e estilos de vida contrários aos que se convencionou, por escolha ou (pseudo)formação, como absolutamente verdadeiros.

Rouanet (2003, p. 11) afirma que tolerância deve ser um caminho, não um fim:
A implantação de uma cultura da tolerância é um cessar-fogo na guerra das
diferenças, mas ainda não é a paz.

As diferenças não devem ser apenas toleradas, porque do contrário elas se reduziriam a um sistema de guetos estanques, que se comunicariam apenas no espaço público”.

Marcuse (1970, p. 102), em ensaio sobre o significado de tolerância na sociedade estadunidense, posiciona-se em favor de uma tolerância partidária, pois que para ser um fim em si mesma requer uma condição de universalidade, sob pena de servir “ à causa da opressão”.

O autor dá um exemplo de tolerância desumana, ainda que presumivelmente pautada no que se considera equivalente à objetividade:

[...] se um locutor de rádio descreve a tortura e assassinato de propagandistas de direitos civis no mesmo tom sem emoção que usa para descrever as flutuações do mercado ou as condições do tempo, ou com a mesma grande emoção com que lê os comerciais, então tal objetividade é espúria – mais ainda, ofende a humanidade e à verdade porque se mostra calmo onde deveria ter-se enfurecido, e porque se abstém de acusar quando a acusação ressalta dos próprios fatos.

[...] Se a objetividade tem algo a ver com a verdade, e se a verdade é algo mais do que uma questão de lógica ou ciência, então esse tipo de objetividade é falso, e essa espécie de tolerância é desumana.

Marcuse deixa clara a contradição entre a estrutura social e política da sociedade e o princípio da tolerância que, sendo falsa e abstrata, mais obsta do que promove a mudança ou desempenha a função pela qual foi forjada pelos protagonistas liberais.

Já Matos ([s.d.]) chama a atenção para um outro sentido de tolerância que contraria a concepção conciliadora, quando entendida como combate: “ Neste caso, tolerar é esforço para desfazer ortodoxias, revelar a dessemelhança no que parece homogêneo, a fim de que um possa ir ao encontro do Outro” (p. 1).

O desejo de individualizar e diferenciação não se define por um simples “ ideal do eu”.

Mais que isso, pressupõe condições sociais para que o reconhecimento do outro ultrapasse a simples relação interpessoal.

Mesmo a ideia de igualdade pela distribuição de renda, por si só, não garante o princípio de respeito às diferenças.

Assim, igualdade e diferença são conceitos não excludentes, mas interdependentes, que mantêm permanente interação.

A igualdade na perspectiva da democracia liberal afirma-se pelo direito de todos perante a lei, considerando que todos são livres e obedecem às mesmas leis.

Sua contradição efetiva está em que, como princípio, se contrapõe à desigualdade real no que se refere à apropriação dos bens, posicionamento no trabalho e distribuição material e espiritual dos produtos da cultura.

Nesse sentido, as diferenças tornam-se desigualdades nas quais os indivíduos são negados entre os que se consideram iguais.

É pertinente considerar a produção social dessa diferença, que resulta em atitudes, preconceitos, estereótipos e estigmatização, posicionando socialmente aqueles considerados diferentes como cidadãos de segunda categoria.

A convivência na diversidade não significa assumir a posição de espectador passivo e tolerante.

O pressuposto essencial está em admitir que cada indivíduo tem direito de combinar experiências pessoais de vida com a coletividade, imprimindo, todavia, uma identidade particular que constitui sua individualidade.

É importante reafirmar que esse direito se encontra impedido de ser realizado na atual sociedade, que dispensa as singularidades individuais.

A conveniência do discurso da diferença expressa-se pela necessidade de pacificação social naquilo que inquieta.

É necessário harmonizar as relações com o outro marginal e estranho para fortalecer a segurança e garantir minimamente a “ paz social”.

Impedir o conflito e a violência das relações sem superar as causas que assim as configuram apenas forja uma aparência de sociedade acolhedora e democrática, pois que a essência do conflito irracional não é superada.

Este tem sido o encaminhamento dado pela mídia, por meio de peças publicitárias rentáveis, quando veicula mensagens mitigadoras das relações multiculturais, convertendo-as em causas nobres, para assim legitimar socialmente a convivência tolerante.

É a ideologia prestando-se à defesa dos ideais liberais de igualdade e fraternidade ao que é permitido na sociedade atual.

Os alinhamentos propostos pelos mecanismos ideológicos criam necessidades de consumo e de comportamentos sedutores para um projeto exterior aos indivíduos e, por assim ser, não exercem a liberdade e a autonomia.

Na medida em que a pulsão pela vida está enfraquecida, o risco do impulso destrutivo é uma perspectiva real de prevalência da barbárie.

Nesse processo, a ideologia revela, não mais oculta, levando as pessoas a gastarem muito da energia que têm para esconder a percepção do horror.

Essa possibilidade custosa de que falam os autores não pode ser contestada, pois que os processos de individualização e indiferenciação são movimentos de tensão e conflito subordinados às relações de poder.

Porém, como afirma Zuin (1999, p. 118), “ o não presente não pode e não deve se transformar num ausente”.

Falar que a individualização é um projeto inviável nesta sociedade não indica a impossibilidade de nela haver confrontos e conflitos que podem, pela crítica iminente, desmascarar o caráter afirmativo do real a partir da leitura do que é silenciado.

O que ora se apresenta na sociedade contemporânea, vinda dos movimentos sociais e por parte dos intelectuais que se põem em favor de um projeto de humanização das relações sociais, é uma clara intenção de criticar todo tipo de segregação mantenedora da menoridade e heteronomia de seus membros.

Se antes esse era um fenômeno justificado pela carência de condições objetivas para superar tal situação, hoje não é mais acolhido como argumento racional.

O entendimento sobre diferenças como um componente da individualidade remete-nos aos questionamentos sobre sua possibilidade nesta sociedade, em que as relações continuam sendo de domínio e expropriação que mais respondem a uma sobrevivência irracional.

É importante reafirmar a dependência mútua da sociedade e do indivíduo, para evitar o entendimento dessa reciprocidade como uma abstração, como se fosse um conceito puro.

O indivíduo não é um ser natural que se emancipa dentro dos limites de si mesmo, uma vez que não é apenas uma entidade biológica.

A auto determinação ocorre na medida em que, tomando consciência do mundo, adquire consciência de si.

Assim, o indivíduo concretiza-se na sociedade e por meio dela.

As limitações para sua constituição pelos processos formativos da atual sociedade, contudo, retiram a força da individualização, reforçando a não diferenciação, que é a outra face do processo de socialização.




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LUCIENE M. DA SILVA, doutora em educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, é professora da Universidade do Estado da Bahia, atuando no Curso de Graduação em Pedagogia e no Programa de Pós-Graduação Educação e Contemporaneidade da mesma universidade.

Publicações mais importantes: com FALSARELLA, Ana Maria. Preconceito na escola inclusiva (Presença Pedagógica , Belo Horizonte, Dimensão, v. 8, n. 46, p. 96-106, jul./ago. 2002); com OLAVO, Antonio; PEREIRA, Dirceu de Socorro; GUERRA FILHO, Sérgio.

Quilombos da Bahia – Manual Pedagógico (Salvador: Portfolium, 2005); Apontamentos sobre as contradições da questão deficiência e trabalho (In: ENCONTRO MINEIRO DE PSICOLOGIA SOCIAL DA ABRAPSO, 14., 2005, Belo Horizonte.

Anais... Belo Horizonte, 2005. 1 CD-ROM). Pesquisa em desenvolvimento:“ Um estudo sobre o movimento em defesa dos direitos das pessoas com deficiência: a atuação para a inclusão”.E-mail: luciene@portfolium.com.br
Recebido em janeiro de 2006 Aprovado em maio de 2006 Resumos/Abstracts/Resumens



O estranhamento causado pela deficiência: preconceito e experiência.

Discute as relações entre preconceito e deficiência.

Tomo como referenciais fundamentais os estudos de T. Adorno e M. Horkheimer sobre preconceito, além das contribuições de autores como Lígia Amaral e José Leon Crochik.

Para eles, o preconceito às pessoas com deficiência configura-se como um mecanismo de negação social, uma vez que suas diferenças são ressaltadas como uma falta, carência ou impossibilidade.

A deficiência inscreve no próprio corpo do indivíduo seu caráter particular.

O corpo deficiente é insuficiente para uma sociedade que demanda dele o uso intensivo que leva ao desgaste físico, resultado do trabalho subserviente; ou para uma construção de corporeidade que objetiva meramente o controle e a correção, em função de uma estética corporal hegemônica, com interesses econômicos.

Nesse sentido, todos nós nos distanciamos cada vez mais da autonomia e da possibilidade de diferenciação, restando apenas a adaptação à situação existente, que se constitui em um esforço para aceitar a mentira necessária para a sobrevivência ou autopreservação.


Palavras-chave:

Diferença; preconceito; inclusão; deficiência; educação especial.



Fonte: - www.scielo.com.br
















Um comentário:

  1. Se houvesse uma acessibilidade adequada em nossas cidades como nas calçadas, comércio, shoppings, escolas, faculdades, universidades, transporte, hospitais e outros por onde os deficientes pudessem circular entre as pessoas, não haveria a estranheza e nem o preconceito das pessoas em relação a deficiência.

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