Acreditar em si mesmo

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quarta-feira, 14 de junho de 2017

O estranhamento causado pela deficiência.



O estranhamento causado
pela deficiência.



Pode ocorrer a reação mimética de que fala Crochik(1997), que consiste num imobilismo de impacto por parte do preconceituoso, semelhante ao que acontece com alguns animais ao serem perseguidos.

Por serem as motivações inconscientes decisivas para a formação do preconceito, é pertinente uma reflexão que resulte na explicitação das causas de tal estranheza.

O corpo marcado pela deficiência, por ser disforme ou fora dos padrões, lembra a imperfeição humana.

Como nossa sociedade cultua o corpo útil e aparentemente saudável, aqueles que portam uma deficiência lembram a fragilidade que se quer negar.

Não os aceitamos porque não queremos que eles sejam como nós, pois assim nos igualaríamos.

É como se eles nos remetessem a uma situação de inferioridade.

Tê-los em nosso convívio funcionaria como um espelho que nos lembra que também poderíamos ser como eles.

Esse potencial, que é real, em vista das trágicas mudanças que nos podem ocorrer, é que nos faz frágeis, uma vez que queremos ser sempre completos e constantes.

O que também parece perturbar nos contatos com pessoas com deficiência é o fato de não sabermos como lidar com elas, posto que a previsibilidade é uma forte característica das relações sociais da contemporaneidade.

O estigma, por ser uma marca, um rótulo, é o que mais evidencia, possibilitando a identificação.

Quando passamos a reconhecer alguém pelo rótulo, o relacionamento passa a ser com este, não com o indivíduo.

E, assim, idealizamos uma vida particular dos cegos, dos surdos, que explica todos os seus comportamentos de uma forma inflexível, por exemplo: ele age assim porque é cego.

Nesse processo de rotulação, o indivíduo estigmatizado incorpora determinadas representações, passa a identificar-se com uma tipificação que o nega como indivíduo.

Essas pessoas passam a ser percebidas, a princípio, por essa diferença negativa, o que irá indicar fortemente como elas irão comportar-se.

Glat (1991, p. 9) expressa esta particularidade das interações como um “ fabuloso teatro”:

Esse rótulo tem uma dupla função: ao mesmo tempo que serve de ingresso numerado, indicando qual o lugar onde ele tem direito de sentar no “Teatro da Vida”, determina também o script que o indivíduo terá que representar enquanto ator nesse teatro!...

Assim, não só ele passa a agir segundo os padrões esperados pelo papel (os únicos que lhe foram ensinados), como os outros atores também contracenam com ele enquanto pessoa estigmatizada reforçando ainda mais esse papel.

Nesse ambiente, as pessoas constituem-se de forma defensiva para evitar maior sofrimento.

Muitas vezes as pessoas com deficiência aceitam e até defendem encaminhamentos que negam as suas possibilidades de escolha e atuação, reforçando ações beneficentes e assistencialistas que têm a incapacidade como princípio.

Nesse sentido, todos nós, e não apenas as pessoas com deficiência, nos distanciamos cada vez mais da autonomia e da possibilidade de diferenciação, restando apenas a adaptação à situação existente, que constituim esforço para aceitar a mentira necessária para a sobrevivência ou autopreservação, porém extremamente onerosa em termos de energia que poderia ser utilizada para se contrapor a ela.

Esse mecanismo é possível devido à consciência coisificada, que se orienta pelo princípio da adaptação.

A condição das pessoas com deficiência é um terreno fértil para o preconceito em razão de um distanciamento em relação aos padrões físicos e/ou intelectuais que se definem em função do que se considera ausência, falta ou impossibilidade.

Fixa-se apenas num aspecto ou atributo da pessoa, tornando a diferença uma exceção.

Vash (1988) descreve três tendências para explicar a desvalorização das pessoas com deficiência: a consideração do preconceito como algo biologicamente determinado, o questionamento psicossocial, segundo o qual no plano das relações sociais os diferentes são menos tolerados, e a tendência que a autora denomina político-econômica, em que ser deficiente resulta em mais custos para o sistema social, que envolvem desde a família até a sociedade mais ampla.

Amaral (1998, p. 16-17) descreve três versões do preconceito dirigido a essas pessoas: chama de “generalização indevida” o juízo que transforma a
condição de limitação específica de uma pessoa em totalidade, ou seja, ela torna-se deficiente por ter uma deficiência; “ correlação linear” é a disposição para elaborar relações do tipo “ se...então”, simplificando de forma demasiada o raciocínio, consolidando o preconceito pela economia do esforço intelectual.

E o “ contágio osmótico” é o temor do contato e do convívio, numa espécie de recusa em ser visto como um deficiente.

Inúmeras são as formas pelas quais o preconceito às pessoas com deficiência se constitui e é reforçado: pela educação escolar, pela mídia, nas relações familiares, pelo trabalho, pela literatura, entre outras.

Vivemos atualmente uma hiper exposição do corpo como produto, algo passível de elaboração e reconstrução, tendo como referência uma cartografia corporal com toques de sedução e negação dos traços do tempo.

Sabemos que os meios de comunicação, por si sós, não determinam modelos estéticos corporais; são, porém, um poderoso braço ideológico de divulgação e convencimento dos padrões selecionados e acionados pela indústria.

A produção televisiva no Brasil, reconhecidamente intensa, e uma população vulnerável e receptiva aos seus produtos, devido ao baixo nível de escolaridade e rendimento, são componentes fundamentais para a legitimação de “ necessidades” e formas de satisfazê-las.

A não visibilidade das pessoas com deficiência no âmbito das relações sociais é o que determina sua ausência na mídia, posto que, na lógica da indústria cultural, não existem necessidades a elas relacionadas.

Sendo assim, o silêncio sobre elas é anterior e exterior aos veículos de comunicação, e suas poucas aparições ficam restritas às campanhas publicitárias para arrecadação de recursos para as instituições filantrópicas que veiculam mensagens que as representam como vítimas ou como heróis.

A televisão, como um dos mais poderosos veículos de comunicação atualmente, forja a hegemonia de valores por meio dos programas de entretenimento, jornalismo e publicidade, tornando-os referência para milhões de consumidores.

Sua mensagem, que alia discurso e imagem, combina, de forma híbrida, diversos roteiros e mensagens sobre o “ ser deficiente”, mesmo sem frequentemente mostrá-lo, veiculando estereótipos diversos a partir de matérias de suposta prestação de serviços, informações imprecisas e errôneas, personagens caricatos em que predominam os discursos beneficentes, preconceituosos e sensacionalistas.

O enfoque dado pela mídia às notícias que envolvem pessoas com deficiência as coloca numa posição de vítima, com ênfase na impotência e dependência, revigorando a discriminação.

A publicação - Mídia e deficiência, coordenada pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI) e Fundação Banco do Brasil, assinala:

Mesmo quando existe interesse e desejo de realizar uma boa cobertura, os jornalistas se deparam com a desinformação sobre aspectos educacionais, jurídicos, técnicos, médicos, éticos e políticos. […]

Não há preocupação em divulgar serviços relacionados à melhora da qualidade devida de crianças, adolescentes, adultos e idosos com deficiência.

Mais de 60% das matérias analisadas só ouviram uma fonte.

Na maioria delas tampouco há clareza sobre os direitos desses cidadãos.

E quase sempre a entrada da questão na pauta dos meios depende de eventos organizados por entidades interessadas na causa ou da agenda de órgãos oficiais. (Vivarta, 2003, p. 35)

Além disso, não se percebe uma atitude de pressão, por parte dos meios de comunicação, para que os órgãos públicos prestem serviços a esse segmento da população, na medida em que veiculam matérias que envolvem muito mais as entidades filantrópicas e suas realizações, deixando no esquecimento os órgãos do Estado responsáveis por políticas públicas na área, a exemplo da Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE) e a Secretaria de Educação Especial (SEESP), ou ainda o projeto de lei de autoria do senador Paulo Paim, que busca estabelecer mecanismos e ações legais para assegurar os plenos direitos dessas pessoas.

Frequentemente, das pessoas com deficiência é retirada a possibilidade de constituírem-se como sujeitos, porque lhes são atribuídas qualidades especiais que tornam natural a sua condição de “ pessoa deficiente” e, como tal, sem necessidades cognitivas, de interações sociais ou de aprendizagem.

Esse processo de “ sublimação” é responsável pelo tratamento assistencialista prestado por instituições especializadas e voluntários que impregnam suas práticas de um amor caridoso justificado por um entendimento de que essas pessoas são naturalmente boas, carentes e puras.

É perceptível o sentimento de gratidão que têm essas pessoas pelos “voluntários”.

Uma certa comiseração se instala nos interstícios da relação “deficiente/voluntário”, em que ambos se auto compadecem de suas condições.

O “ deficiente” torna-se “ grato pela atenção dispensada”, expressando sua carência e levando seu “ agente voluntário” a assumir-se como excepcionalmente bom, solidário e generoso.

A filantropia não abarca somente os deficientes, mas os desvalidos.

O atual discurso pedagógico, tardiamente no Brasil, recorre a uma perspectiva de acolhimento das diferenças por meio da orientação inclusivista, no intuito de que todos os alunos estudem num ambiente único e que o foco da aprendizagem não esteja no aluno, mas na classe.

Embora tal orientação tenha se constituído em uma tendência para os encaminhamentos das ações sociais em atendimento às reivindicações por inclusão social de variados matizes (o movimento antimanicomial, os movimentos dos idosos ou terceira idade etc.), nas últimas décadas, tem sido na área de educação que a denominação mais intensivamente aderiu.

Falar em movimento inclusivista hoje é compreendido como a educação de crianças e jovens com necessidades especiais em escolas regulares.

Mas o apelo para a convivência com as diferenças – tema, aliás, recorrente na literatura educacional – faz um amplo eco exatamente porque a convivência humana é ainda marcada por conflitos em função dos preconceitos e das discriminações de gênero, de etnia, de religião, entre outros.

A observação mais atenta da ambiência da escola regular, onde estão alguns poucos alunos que têm deficiência, é nitidamente perturbadora: percebe-se que esses alunos tentam adaptar-se, acessando o potencial de que dispõem dentro das suas possibilidades num ambiente misturado e rico para interações, mas que por si só, sem a atenção sobre suas necessidades especiais, não possibilita experiências de formação e não aproveita as possibilidades, deixando os limitados a uma participação precária no que se refere à socialização e à aprendizagem.

Ora, essas experiências têm sido negadas na sociedade atual, que impõe o conhecimento coisificado e descontextualizado, pronto para ser utilizado.

O desencantamento do mundo tornou-se um paradoxo, pois abstraiu das experiências a aproximação com as imagens e formas, substituídas pelo discurso elaborado em que o conteúdo é representado a partir de recursos tecnológicos, o que favorece um outro encantamento que nada tem de racional.

Se entendermos experiência como uma atividade auto reflexiva proporcionada pela apreensão da realidade nas suas variadas manifestações, sem essa aptidão se exercita a esperteza necessária no mundo de “ fora”, que se constitui na astúcia para sobreviver em ambientes considerados hostis.

O que, de fato, se torna evidente é a dificuldade dos alunos, com ou sem deficiência, para constituírem experiências, tal como a entende Adorno (1996, p. 405): “ a continuidade da consciência em que perdura o ainda não existente e em que o exercício e a associação fundamentam uma tradição no indivíduo”.

O que se vê é a apreensão de informações que prescindem de contato e aproximação, não permitindo encontros, nem trocas, nem elaborações do vivido.

A imagem feita pelo autor para esse estado de inércia é muito reveladora: como os viajantes que, do trem, denominam lugares por onde passaram “ como um raio”, porém tendo sempre uma resposta para qualquer pergunta sobre seus itinerários.

Vivemos em ambientes onde quase nunca encontramos pessoas com deficiências, devido aos diversos impedimentos que os tornam inacessíveis: barreiras arquitetônicas, ausência de sinalizações, transportes inadequados etc., apesar dos diversos dispositivos legais existentes no país para garantia dos direitos sociais.

A presença desses alunos na escola causa uma natural curiosidade sobre suas vidas, seu cotidiano, suas formas de percepção, que até pode motivar uma aproximação ou convivência.

O afastamento dá-se pelo medo da experiência e das relações espontâneas que permitem a elaboração do medo e do desejo.

Dessa forma, vivemos aquém do que potencialmente podemos ser, enrijecidos como o caracol que recolhe suas antenas num movimento de bloqueio ante o perigo premeditado.

Se este é real, mediante os condicionamentos e as relações sociais coisificadas, cabe forjar alternativas de liberdade e felicidade.

A apreensão dos objetos, sendo operada de forma dissociada, impõe o divórcio entre o pensar e o sentir, e assim vivemos impassíveis diante do mundo, incapacitados para as relações mais livres.

Essa cisão só autoriza a aproximação com os simulacros, no máximo experiências incompletas, carentes de reflexão e atividade.

A identificação só é possível por meio da convivência, na medida em que enfatiza o que não é igual e, ao mesmo tempo, ressalta a idéia de ser igual na diferença, desafiando os receios do estranhamento e do medo.

A desvalorização e o distanciamento da experiência podem explicar-se, também, porque queremos ver os resultados, subtraindo-a, tal como demandam as relações contemporâneas baseadas no imediatismo e automatismo.

Experiência é “ a continuidade da consciência em que perdura o ainda não existente e em que o exercício e a associação fundamentam uma tradição no indivíduo”

O autor diz ainda, em outra passagem do mesmo texto, que: “Quem dispensa a continuidade do juízo e da experiência se vê provido por tais sistemas, apenas com esquemas para subjugar a realidade.

De fato, não alcançam a realidade, mas contentam-se em compensar o medo diante do incompreendido” (idem, idem).

A experiência desafia os medos do contato com o diferente, medo de ser discriminado, de experimentar algo não habitual, medo de arriscarse ao erro.

E é o medo que impede o confronto com o sofrimento, que se torna mais resistente se não nos colocamos diante dele.

Quando o medo não é reprimido, quando permitimos ter realmente tanto medo quanto a realidade exige, então justamente por essa via desaparecerá, provavelmente, grande parte dos efeitos deletérios do medo inconsciente e reprimido” (Adorno, 1995a, p. 129).


Diferença e tolerância

A discussão sobre as diferenças demanda uma concepção de igualdade para que se possa pensar a sua afirmação na sociedade.

A igualdade pede mais que o simples reconhecimento do outro, que, assim sendo, cabe enfatizar, se limita à tolerância, já que essa posição não permite que cada indivíduo se constitua a partir de sua experiência, sem se reduzir a um insumo da racionalidade instrumental.

O sentimento que mais se manifesta nos tempos atuais é a tolerância como limite do aceitável, quando já poderíamos nos manifestar com solidariedade em relação ao diferente, por ser a diferença a essência de todos nós.

O “distinto” é mantido na sociedade dentro do parâmetro do tolerável ou integrado, e a indiferença é o que resta como condição de sobrevivência, retratando a frieza.

A tolerância vem sendo afirmada como um princípio instaurador para a convivência entre as pessoas diferentes.

Um breve levantamento sobre o termo indica que seu aparecimento se dá nos idos do século XIV, nos escritos do filósofo Guillermo de Ockham, como afirmação da possibilidade de salvação sem a fé na religião canônica.

É uma virtude em prol da convivência harmoniosa e pacífica, tendo sido colocada como um princípio fundamental na vida civil a partir da Reforma, “nas lutas que contrapuseram, uma à outra, as várias partes da cristandade” (Abbagnano, 1970).

Segundo Cardoso ([s.d.]), a Carta acerca da tolerância de John Locke, escrita em 1689, e o Tratado sobre a tolerância de Voltaire, publicado em 1763, 1 A imagem do caracol, apresentada por Horkheimer e Adorno (1985, p. 239), indica a gênese do ensimesmamento, pois sempre que o pequeno animal recolhe as antenas inibe também sua espontaneidade e curiosidade, tão necessárias para a experiência.

Primeira parte.














Um comentário:

  1. Se houvesse uma acessibilidade adequada para os deficientes em todos os lugares, estes poderiam frequentar e se relacionar com as outras pessoas nas escolas, trabalho, parques e outros; desse modo estariam se incluindo na sociedade e assim não haveria o estranhamento com as pessoas. É necessário projetos e programas que facilite o acesso do deficientes em todas as áreas, assim se estaria fazendo a inclusão deste na sociedade; sem acesso não há como fazer a inclusão social.

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