O
estranhamento causado
pela deficiência.
Pode
ocorrer a reação mimética de que fala Crochik(1997), que consiste
num imobilismo de impacto por parte do preconceituoso, semelhante ao
que acontece com alguns animais ao serem perseguidos.
Por
serem as motivações inconscientes decisivas para a formação do
preconceito, é pertinente uma reflexão que resulte na explicitação
das causas de tal estranheza.
O
corpo marcado pela deficiência, por ser disforme ou fora dos
padrões, lembra a imperfeição humana.
Como
nossa sociedade cultua o corpo útil e aparentemente saudável,
aqueles que portam uma deficiência lembram a fragilidade que se quer
negar.
Não
os aceitamos porque não queremos que eles sejam como nós, pois
assim nos igualaríamos.
É
como se eles nos remetessem a uma situação de inferioridade.
Tê-los
em nosso convívio funcionaria como um espelho que nos lembra que
também poderíamos ser como eles.
Esse
potencial, que é real, em vista das trágicas mudanças que nos
podem ocorrer, é que nos faz frágeis, uma vez que queremos ser
sempre completos e constantes.
O
que também parece perturbar nos contatos com pessoas com deficiência
é o fato de não sabermos como lidar com elas, posto que a
previsibilidade é uma forte característica das relações sociais
da contemporaneidade.
O
estigma, por ser uma marca, um rótulo, é o que mais evidencia,
possibilitando a identificação.
Quando
passamos a reconhecer alguém pelo rótulo, o relacionamento passa a
ser com este, não com o indivíduo.
E,
assim, idealizamos uma vida particular dos cegos, dos surdos, que
explica todos os seus comportamentos de uma forma inflexível, por
exemplo: ele age assim porque é cego.
Nesse
processo de rotulação, o indivíduo estigmatizado incorpora
determinadas representações, passa a identificar-se com uma
tipificação que o nega como indivíduo.
Essas
pessoas passam a ser percebidas, a princípio, por essa diferença
negativa, o que irá indicar fortemente como elas irão comportar-se.
Glat
(1991, p. 9) expressa esta particularidade das interações como um “
fabuloso teatro”:
Esse
rótulo tem uma dupla função: ao mesmo tempo que serve de ingresso
numerado, indicando qual o lugar onde ele tem direito de sentar no
“Teatro da Vida”, determina também o script que o indivíduo
terá que representar enquanto ator nesse teatro!...
Assim,
não só ele passa a agir segundo os padrões esperados pelo papel
(os únicos que lhe foram ensinados), como os outros atores também
contracenam com ele enquanto pessoa estigmatizada reforçando ainda
mais esse papel.
Nesse
ambiente, as pessoas constituem-se de forma defensiva para evitar
maior sofrimento.
Muitas
vezes as pessoas com deficiência aceitam e até defendem
encaminhamentos que negam as suas possibilidades de escolha e
atuação, reforçando ações beneficentes e assistencialistas que
têm a incapacidade como princípio.
Nesse
sentido, todos nós, e não apenas as pessoas com deficiência, nos
distanciamos cada vez mais da autonomia e da possibilidade de
diferenciação, restando apenas a adaptação à situação
existente, que constituim esforço para aceitar a mentira necessária
para a sobrevivência ou autopreservação, porém extremamente
onerosa em termos de energia que poderia ser utilizada para se
contrapor a ela.
Esse
mecanismo é possível devido à consciência coisificada, que se
orienta pelo princípio da adaptação.
A
condição das pessoas com deficiência é um terreno fértil para o
preconceito em razão de um distanciamento em relação aos padrões
físicos e/ou intelectuais que se definem em função do que se
considera ausência, falta ou impossibilidade.
Fixa-se
apenas num aspecto ou atributo da pessoa, tornando a diferença uma
exceção.
Vash
(1988) descreve três tendências para explicar a desvalorização
das pessoas com deficiência: a consideração do preconceito como
algo biologicamente determinado, o questionamento psicossocial,
segundo o qual no plano das relações sociais os diferentes são
menos tolerados, e a tendência que a autora denomina
político-econômica, em que ser deficiente resulta em mais custos
para o sistema social, que envolvem desde a família até a sociedade
mais ampla.
Amaral
(1998, p. 16-17) descreve três versões do preconceito dirigido a
essas pessoas: chama de “generalização indevida” o juízo que
transforma a
condição
de limitação específica de uma pessoa em totalidade, ou seja, ela
torna-se deficiente por ter uma deficiência; “ correlação
linear” é a disposição para elaborar relações do tipo “
se...então”, simplificando de forma demasiada o raciocínio,
consolidando o preconceito pela economia do esforço intelectual.
E
o “ contágio osmótico” é o temor do contato e do convívio,
numa espécie de recusa em ser visto como um deficiente.
Inúmeras
são as formas pelas quais o preconceito às pessoas com deficiência
se constitui e é reforçado: pela educação escolar, pela mídia,
nas relações familiares, pelo trabalho, pela literatura, entre
outras.
Vivemos
atualmente uma hiper exposição do corpo como produto, algo passível
de elaboração e reconstrução, tendo como referência uma
cartografia corporal com toques de sedução e negação dos traços
do tempo.
Sabemos
que os meios de comunicação, por si sós, não determinam modelos
estéticos corporais; são, porém, um poderoso braço ideológico
de divulgação e convencimento dos padrões selecionados e acionados
pela indústria.
A
produção televisiva no Brasil, reconhecidamente intensa, e uma
população vulnerável e receptiva aos seus produtos, devido ao
baixo nível de escolaridade e rendimento, são componentes
fundamentais para a legitimação de “ necessidades” e formas de
satisfazê-las.
A
não visibilidade das pessoas com deficiência no âmbito das
relações sociais é o que determina sua ausência na mídia, posto
que, na lógica da indústria cultural, não existem necessidades a
elas relacionadas.
Sendo
assim, o silêncio sobre elas é anterior e exterior aos veículos de
comunicação, e suas poucas aparições ficam restritas às
campanhas publicitárias para arrecadação de recursos para as
instituições filantrópicas que veiculam mensagens que as
representam como vítimas ou como heróis.
A
televisão, como um dos mais poderosos veículos de comunicação
atualmente, forja a hegemonia de valores por meio dos programas de
entretenimento, jornalismo e publicidade, tornando-os referência
para milhões de consumidores.
Sua
mensagem, que alia discurso e imagem, combina, de forma híbrida,
diversos roteiros e mensagens sobre o “ ser deficiente”, mesmo
sem frequentemente mostrá-lo, veiculando estereótipos diversos a
partir de matérias de suposta prestação de serviços, informações
imprecisas e errôneas, personagens caricatos em que predominam os
discursos beneficentes, preconceituosos e sensacionalistas.
O
enfoque dado pela mídia às notícias que envolvem pessoas com
deficiência as coloca numa posição de vítima, com ênfase na
impotência e dependência, revigorando a discriminação.
A
publicação - Mídia e deficiência, coordenada pela Agência de
Notícias dos Direitos da Infância (ANDI) e Fundação Banco do
Brasil, assinala:
Mesmo
quando existe interesse e desejo de realizar uma boa cobertura, os
jornalistas se deparam com a desinformação sobre aspectos
educacionais, jurídicos, técnicos, médicos, éticos e políticos.
[…]
Não
há preocupação em divulgar serviços relacionados à melhora da
qualidade devida de crianças, adolescentes, adultos e idosos com
deficiência.
Mais
de 60% das matérias analisadas só ouviram uma fonte.
Na
maioria delas tampouco há clareza sobre os direitos desses cidadãos.
E
quase sempre a entrada da questão na pauta dos meios depende de
eventos organizados por entidades interessadas na causa ou da agenda
de órgãos oficiais. (Vivarta, 2003, p. 35)
Além
disso, não se percebe uma atitude de pressão, por parte dos meios
de comunicação, para que os órgãos públicos prestem serviços a
esse segmento da população, na medida em que veiculam matérias que
envolvem muito mais as entidades filantrópicas e suas realizações,
deixando no esquecimento os órgãos do Estado responsáveis por
políticas públicas na área, a exemplo da Coordenadoria Nacional
para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE) e a
Secretaria de Educação Especial (SEESP), ou ainda o projeto de lei
de autoria do senador Paulo Paim, que busca estabelecer mecanismos e
ações legais para assegurar os plenos direitos dessas pessoas.
Frequentemente,
das pessoas com deficiência é retirada a possibilidade de
constituírem-se como sujeitos, porque lhes são atribuídas
qualidades especiais que tornam natural a sua condição de “
pessoa deficiente” e, como tal, sem necessidades cognitivas, de
interações sociais ou de aprendizagem.
Esse
processo de “ sublimação” é responsável pelo tratamento
assistencialista prestado por instituições especializadas e
voluntários que impregnam suas práticas de um amor caridoso
justificado por um entendimento de que essas pessoas são
naturalmente boas, carentes e puras.
É
perceptível o sentimento de gratidão que têm essas pessoas pelos
“voluntários”.
Uma
certa comiseração se instala nos interstícios da relação “deficiente/voluntário”, em que ambos se auto compadecem de suas
condições.
O
“ deficiente” torna-se “ grato pela atenção dispensada”,
expressando sua carência e levando seu “ agente voluntário” a
assumir-se como excepcionalmente bom, solidário e generoso.
A
filantropia não abarca somente os deficientes, mas os desvalidos.
O
atual discurso pedagógico, tardiamente no Brasil, recorre a uma
perspectiva de acolhimento das diferenças por meio da orientação
inclusivista, no intuito de que todos os alunos estudem num ambiente
único e que o foco da aprendizagem não esteja no aluno, mas na
classe.
Embora
tal orientação tenha se constituído em uma tendência para os
encaminhamentos das ações sociais em atendimento às reivindicações
por inclusão social de variados matizes (o movimento antimanicomial,
os movimentos dos idosos ou terceira idade etc.), nas últimas
décadas, tem sido na área de educação que a denominação mais
intensivamente aderiu.
Falar
em movimento inclusivista hoje é compreendido como a educação de
crianças e jovens com necessidades especiais em escolas regulares.
Mas
o apelo para a convivência com as diferenças – tema, aliás,
recorrente na literatura educacional – faz um amplo eco exatamente
porque a convivência humana é ainda marcada por conflitos em função
dos preconceitos e das discriminações de gênero, de etnia, de
religião, entre outros.
A
observação mais atenta da ambiência da escola regular, onde estão
alguns poucos alunos que têm deficiência, é nitidamente
perturbadora: percebe-se que esses alunos tentam adaptar-se,
acessando o potencial de que dispõem dentro das suas possibilidades
num ambiente misturado e rico para interações, mas que por si só,
sem a atenção sobre suas necessidades especiais, não possibilita
experiências de formação e não aproveita as possibilidades,
deixando os limitados a uma participação precária no que se refere
à socialização e à aprendizagem.
Ora,
essas experiências têm sido negadas na sociedade atual, que impõe
o conhecimento coisificado e descontextualizado, pronto para ser
utilizado.
O
desencantamento do mundo tornou-se um paradoxo, pois abstraiu das
experiências a aproximação com as imagens e formas, substituídas
pelo discurso elaborado em que o conteúdo é representado a partir
de recursos tecnológicos, o que favorece um outro encantamento que
nada tem de racional.
Se
entendermos experiência como uma atividade auto reflexiva
proporcionada pela apreensão da realidade nas suas variadas
manifestações, sem essa aptidão se exercita a esperteza necessária
no mundo de “ fora”, que se constitui na astúcia para sobreviver
em ambientes considerados hostis.
O
que, de fato, se torna evidente é a dificuldade dos alunos, com ou
sem deficiência, para constituírem experiências, tal como a
entende Adorno (1996, p. 405): “ a continuidade da consciência em
que perdura o ainda não existente e em que o exercício e a
associação fundamentam uma tradição no indivíduo”.
O
que se vê é a apreensão de informações que prescindem de contato
e aproximação, não permitindo encontros, nem trocas, nem
elaborações do vivido.
A
imagem feita pelo autor para esse estado de inércia é muito
reveladora: como os viajantes que, do trem, denominam lugares por
onde passaram “ como um raio”, porém tendo sempre uma resposta
para qualquer pergunta sobre seus itinerários.
Vivemos
em ambientes onde quase nunca encontramos pessoas com deficiências,
devido aos diversos impedimentos que os tornam inacessíveis:
barreiras arquitetônicas, ausência de sinalizações, transportes
inadequados etc., apesar dos diversos dispositivos legais existentes
no país para garantia dos direitos sociais.
A
presença desses alunos na escola causa uma natural curiosidade sobre
suas vidas, seu cotidiano, suas formas de percepção, que até pode
motivar uma aproximação ou convivência.
O
afastamento dá-se pelo medo da experiência e das relações
espontâneas que permitem a elaboração do medo e do desejo.
Dessa
forma, vivemos aquém do que potencialmente podemos ser, enrijecidos
como o caracol que recolhe suas antenas num movimento de bloqueio
ante o perigo premeditado.
Se
este é real, mediante os condicionamentos e as relações sociais
coisificadas, cabe forjar alternativas de liberdade e felicidade.
A
apreensão dos objetos, sendo operada de forma dissociada, impõe o
divórcio entre o pensar e o sentir, e assim vivemos impassíveis
diante do mundo, incapacitados para as relações mais livres.
Essa
cisão só autoriza a aproximação com os simulacros, no máximo
experiências incompletas, carentes de reflexão e atividade.
A
identificação só é possível por meio da convivência, na medida
em que enfatiza o que não é igual e, ao mesmo tempo, ressalta a
idéia de ser igual na diferença, desafiando os receios do
estranhamento e do medo.
A
desvalorização e o distanciamento da experiência podem
explicar-se, também, porque queremos ver os resultados,
subtraindo-a, tal como demandam as relações contemporâneas
baseadas no imediatismo e automatismo.
Experiência
é “ a continuidade da consciência em que perdura o ainda não
existente e em que o exercício e a associação fundamentam uma
tradição no indivíduo”
O
autor diz ainda, em outra passagem do mesmo texto, que: “Quem
dispensa a continuidade do juízo e da experiência se vê provido
por tais sistemas, apenas com esquemas para subjugar a realidade.
De
fato, não alcançam a realidade, mas contentam-se em compensar o
medo diante do incompreendido” (idem, idem).
A
experiência desafia os medos do contato com o diferente, medo de ser
discriminado, de experimentar algo não habitual, medo de arriscarse
ao erro.
E
é o medo que impede o confronto com o sofrimento, que se torna mais
resistente se não nos colocamos diante dele.
“Quando
o medo não é reprimido, quando permitimos ter realmente tanto medo
quanto a realidade exige, então justamente por essa via
desaparecerá, provavelmente, grande parte dos efeitos deletérios do
medo inconsciente e reprimido” (Adorno, 1995a, p. 129).
Diferença
e tolerância
A
discussão sobre as diferenças demanda uma concepção de igualdade
para que se possa pensar a sua afirmação na sociedade.
A
igualdade pede mais que o simples reconhecimento do outro, que, assim sendo,
cabe enfatizar, se limita à tolerância, já que essa posição não
permite que cada indivíduo se constitua a partir de sua experiência,
sem se reduzir a um insumo da racionalidade instrumental.
O
sentimento que mais se manifesta nos tempos atuais é a tolerância
como limite do aceitável, quando já poderíamos nos manifestar com
solidariedade em relação ao diferente, por ser a diferença a
essência de todos nós.
O
“distinto” é mantido na sociedade dentro do parâmetro do
tolerável ou integrado, e a indiferença é o que resta como
condição de sobrevivência, retratando a frieza.
A
tolerância vem sendo afirmada como um princípio instaurador para a
convivência entre as pessoas diferentes.
Um
breve levantamento sobre o termo indica que seu aparecimento se dá
nos idos do século XIV, nos escritos do filósofo Guillermo de
Ockham, como afirmação da possibilidade de salvação sem a fé na
religião canônica.
É
uma virtude em prol da convivência harmoniosa e pacífica, tendo
sido colocada como um princípio fundamental na vida civil a partir
da Reforma, “nas lutas que contrapuseram, uma à outra, as várias
partes da cristandade” (Abbagnano, 1970).
Segundo
Cardoso ([s.d.]), a Carta acerca da tolerância de John Locke,
escrita em 1689, e o Tratado sobre a tolerância de Voltaire,
publicado em 1763, 1 A imagem do caracol, apresentada por Horkheimer
e Adorno (1985, p. 239), indica a gênese do ensimesmamento, pois
sempre que o pequeno animal recolhe as antenas inibe também sua
espontaneidade e curiosidade, tão necessárias para a experiência.
Primeira
parte.
Fonte:
- www.scielo.com.br
Se houvesse uma acessibilidade adequada para os deficientes em todos os lugares, estes poderiam frequentar e se relacionar com as outras pessoas nas escolas, trabalho, parques e outros; desse modo estariam se incluindo na sociedade e assim não haveria o estranhamento com as pessoas. É necessário projetos e programas que facilite o acesso do deficientes em todas as áreas, assim se estaria fazendo a inclusão deste na sociedade; sem acesso não há como fazer a inclusão social.
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