Depoimento:
“Sou
tetraplégica e tive uma filha de parto normal”
Conheci
o amor da minha vida dançando.
Durante
cinco anos, Jair e eu viajamos pelo Rio Grande do Sul participando de
concursos de dança tradicional gaúcha.
Tinha
17 anos quando me apaixonei por ele.
Eu
trabalhava muito.
Em
Farroupilha, durante o dia, ajudava meus pais com o negócio deles e,
à noite, dava aulas de espanhol em uma escola de Bento Gonçalves,
cidade vizinha.
Naquela
época, ainda não tinha formação universitária, mas era ótima
professora.
Comecei
meio sem querer, mas logo percebi que ensinar me realizava.
Quando
fui convidada a lecionar espanhol em tempo integral, aceitei
imediatamente.
Eu
tinha 26 anos e já estava casada com o Jair há três.
Tinha
certeza de que minha carreira iria decolar.
De
cara, me tornei professora de 11 turmas.
Dava
aulas de manhã, à tarde e à noite todos os dias, e às
sextas-feiras, ia para a escola aprender inglês.
Mas
essa rotina durou apenas um mês.
Jair
e eu marcamos uma viagem de final de semana.
Como
em outras sextas-feiras, ele me daria carona até a escola para a
aula de inglês.
De
lá, sairíamos para encontrar uns amigos e seguir viagem.
Por
isso, nossa moto estava abarrotada de mochilas e ele dirigia devagar.
Perto
das 5h da tarde do dia 25 de agosto de 2006, saímos da nossa casa e
pegamos a estrada para percorrer os conhecidos 20 e poucos
quilômetros que separam Farroupilha, onde morávamos, de Bento
Gonçalves, onde eu trabalhava e estudava.
O
dia estava lindo.
Logo
à nossa frente, dois carros esperavam, um ao lado do outro, para
cruzar a estrada por onde seguíamos.
O
primeiro arrancou para atravessar a via, mas nos viu e parou a tempo.
O
motorista do segundo carro fez quase o mesmo.
Só
que ele não nos viu.
E
não parou.
O
ACIDENTE
Fui
arremessada e, como um mergulhador que bate a cabeça no fundo do
lago, bati com força no asfalto.
Meu
capacete resistiu, mas sabia que algo sério tinha acontecido.
Não
senti nada.
Pior:
percebia que não sentia nada.
Do
pescoço para baixo, meu corpo parecia estar preso num sono profundo.
Não
perdi a consciência.
Tive
medo.
Vi
o socorro chegar.
Vi
o hospital.
Vi
os médicos e senti, por fim, que estava salva.
Mas
não senti quando uma agulha alfinetou os meus pés.
Nem
as minhas pernas.
Nem
a minha barriga.
Nem
os meus braços.
O
diagnóstico era conclusivo: fiquei tetraplégica.
De
tão ciente da gravidade do meu estado, meu único alívio era não
correr o risco de morrer, que eu corria sem saber.
Uma
cirurgia deveria implantar réplicas de titânio nas três vértebras
que a tragédia tirou de mim.
Fui
submetida à primeira operação dois dias após o acidente.
E
a segunda ficou para a semana seguinte, a mesma em que meu pai foi
diagnosticado com câncer.
Não
era fácil admitir que eu não podia mexer um só dedo.
Não
era fácil ter alguém escovando meus dentes, me dando comida na
boca.
Mas
nunca me entreguei.
Durante
os dias em que fiquei entubada, não conseguia falar, mas ria.
Ria
porque sabia que a minha vontade de viver era tão importante para a
minha recuperação quanto a medicina que me salvou do acidente.
Foram
45 dias de hospitalização: 30 na UTI e 15 no quarto.
Nos
primeiros dias do pós-operatório, tive uma surpresa maravilhosa.
O
inchaço do trauma e das cirurgias começou a diminuir, e eu
recuperei parte do movimento dos meus braços.
Até
hoje, a minha mobilidade é a mesma.
Sensibilidade
total, só dos ombros para cima.
Consigo
segurar uma xícara, mas não mexo as mãos, que ficam o tempo todo
quase fechadas.
Enquanto
estava sob tratamento intensivo, tive três pneumonias.
Essa
inflamação respiratória e a lesão na medula deixaram parte de um
dos meus pulmões seriamente debilitada.
De
acordo com os médicos, essa porção quase morta teria de ser
retirada cirurgicamente
De novo, não me
entreguei.
Com
ajuda de fisioterapia, fiz meus pulmões renascerem, voltarem ao
normal sem cirurgia.
A
UTI se transformou na minha residência naquele mês de internação,
entre agosto e setembro de 2006.
Tanto
que chorei com as enfermeiras quando recebi alta para o quarto.
Depois
dos últimos 15 dias no hospital, iria finalmente voltar para a minha
casa.
Mas
não estava pronta para voltar para o meu quarto.
Havia
escadas entre nós.
Até
que pudéssemos adaptar os ambientes, o que consegui fazer graças a
uma herança deixada por meu avô, voltei a morar com os meus pais.
Infelizmente,
o que me esperava lá estava longe de ser um alívio.
Debilitado
por causa do tratamento contra o câncer, meu pai, assim como eu,
estava preso a uma cadeira de rodas.
Dependíamos
da minha mãe e do meu marido para tudo e nenhum de nós sabia como
lidar com a situação.
Era
muito difícil, mas tentávamos deixar tudo mais leve, ríamos juntos
da nossa tragédia.
Quatro
meses depois do acidente, fui pela primeira vez a Brasília, onde
comecei um tratamento na Rede Sarah, que oferece reabilitação
totalmente gratuita.
Lá,
com instrumentos adaptados às minhas mãos, reaprendi a escovar os
dentes, a pentear meu cabelo, a comer sozinha.
Nunca
tinha segurado um pincel, mas até a pintar, eu aprendi.
Com
um apoio enorme do Jair – que do acidente só ganhou um corte no
joelho –, da minha família, da dele e da equipe do hospital, fui
encaixando a minha vida nos eixos da minha cadeira de rodas.
Seis
semanas depois, voltei para a minha casa.
Só
não digo que voltei a ser a Débora de sempre porque, no fundo,
nunca deixei de ser quem eu era.
DANÇAR
E LIBERTAR
Claro
que não é possível ter uma mudança de vida como a minha sem
sentir por tudo que não se pode mais fazer.
Eu
amava dançar.
Até
que fui a uma festa de casamento e vi todo mundo feliz, dançando, e
fiquei arrasada.
Mas
lembrei do que uma psicóloga do Sarah me disse.
Ela
me fez prometer que, na primeira vez que sentisse vontade de dançar,
eu dançaria.
Olhei
para a pista e pensei:
“Quer
saber?
Vou
lá!”.
Foi
a minha libertação.
Dancei
como pude, sentada, mas dancei.
E
nunca mais deixei de me divertir só porque tinha que dançar sobre a
cadeira.
Seis
meses depois daquela sexta-feira, eu estava de volta às aulas
ensinando espanhol.
Foi
nessa época que perdi meu pai.
No
fim das contas, o meu acidente e a doença dele nos colocaram de
volta na mesma casa, e ganhamos de presente a convivência diária
nos últimos meses da vida dele.
Fui
professora por mais um ano e meio e, durante esse período, resolvi
fazer faculdade.
Prestei
vestibular em duas universidades. Passei em ambas e optei pela que
oferecia ensino à distância.
Com
as adaptações desenvolvidas em Brasília, consegui usar o
computador, o que tornou possível conquistar o meu diploma em
Letras. Mas dar aulas já não me realizava mais.
Não
conseguia escrever no quadro com a mesma agilidade nem solucionar as
dúvidas dos alunos como fazia antes, e isso me frustrava.
A
ideia não era voltar a trabalhar só para me sentir útil. Meu plano
era ser feliz. E fazer o meu marido feliz também.
Jair
e eu fomos um casal desde muito cedo, passamos uma vida juntos,
aprendendo juntos.
A
questão sexual sempre me preocupou. Nós tivemos que nos conhecer de
novo, começar do zero.
No
Sarah, existe um programa de reeducação sexual. A troca de
experiências é muito importante.
Na
minha primeira reunião, uma das meninas comentou que a vida sexual
dela tinha melhorado muito depois da lesão medular.
E
eu que, seis meses depois do acidente, ainda não tinha transado, era
só ouvidos.
Em
seguida, resolvi testar a teoria. A primeira vez foi complicada,
porque nenhum de nós sabia exatamente o que fazer.
Eu
não sabia o que ia sentir e tinha medo de não sentir nada, de ficar
inerte. Mas foi maravilhoso. Vi que era possível sentir prazer e
fazer o meu marido feliz.
Nós
só precisaríamos de calma para descobrir exatamente como. A
comparação entre as sensações de antes e depois é inevitável,
mas é parte de um processo de aprendizagem, como em qualquer
relacionamento.
Hoje,
nós dois sabemos que, por mais incrível que pareça, um dos lugares
onde eu mais tenho sensibilidade é justamente na nuca, no local da
minha lesão.
As
pessoas acham que cadeirantes não têm vida sexual e esquecem que
eu, por exemplo, tenho um casamento de nove anos.
O
Jair me surpreende todos os dias. Seria um horror se ele me
abandonasse, mas nunca deixei de falar sobre as nossas dificuldades
por medo de correr esse risco.
Jamais
admitiria que ele continuasse comigo por pena. Cheguei a ter medo que
ele se sentisse culpado pelo acidente, mas isso não aconteceu. Não
temos sequelas psicológicas, pois não tínhamos como evitar o
acidente.
Quero
que ele esteja do meu lado sempre. Existem algumas dificuldades, mas
existem outras graças. Garanto que poucas pessoas sabem como é
fazer sexo numa cadeira de rodas. É só ter criatividade.
Chegaram
a perguntar se a minha gravidez foi resultado de inseminação
artificial. Lógico que não. Fazer a Manu foi uma delícia!
Preparei-me
psicologicamente durante dois anos para a gravidez. Para uma mãe,
saber que não poderá atender todas as necessidades de um filho dói
muito.
Voltei
ao Sarah para buscar orientação e, como acompanhamento de uma
médica especialista em gravidez de alto risco, começamos as
tentativas para ter um bebê em dezembro de 2010.
Em
abril, quando já estávamos acostumados comas negativas, alguns
amigos nos convidaram para fazer uma viagem a Las Vegas dali a algum
tempo. Achamos uma boa ideia.
Mas
a minha menstruação atrasou. Fiz os cálculos e, caso estivesse
grávida, iria para Las Vegas com uma barriga de cinco meses. Preferi
esperar para ter certeza da gravidez antes de comprar as passagens.
Pedi
para o Jair comprar um teste de gravidez. Deu positivo. Quando
contamos aos amigos que não viajaríamos, foi uma festa. Todos
sabiam o motivo. Nunca um cancelamento foi tão comemorado como
aquele. Recebi o diploma universitário exibindo a minha barriga.
A
gravidez foi muito tranquila. Normalmente, as gestantes como eu fazem
cesariana com anestesia geral.
Eu,
que passei pelo horror do meu acidente sem perder um segundo de
consciência, não admitiria dormir no nascimento da minha filha.
Os
médicos pesquisaram e concluíram que eu poderia tê-la de parto
normal. Mas as dores preocupavam. Não é porque não sinto dor que
ela deixa de existir – o fenômeno chama-se disreflexia.
Quando
tenho uma dor de estômago, não sinto o incômodo localizado, mas
posso ter calafrios ou dor de cabeça, por exemplo. É esse tipo de
sensação que me avisa quando algo não está bem no meu corpo.
Por
isso, mesmo não tendo sensibilidade, o parto da Manu foi com
analgesia.
As
contrações vieram em forma de arrepios. Deve ter sido o parto mais
tranquilo de todos os tempos. A sala estava à meia luz, uma música
clássica tocava baixinho.
O
engraçado é que era eu quem dizia para a enfermeira: “Força,
Karen, força!”, porque quem fazia o esforço todo era ela,
empurrando a minha barriga a cada contração. Todo mundo chorou
quando a Manuela nasceu, no dia 10 de janeiro de 2012. Foi lindo.
Com
a Manu, desde sempre, foi incrível. No início, vivi momentos de
pavor.
Não
conseguia acalmar a minha própria filha. Toda mãe sente
insegurança, mas acho que senti mais. Isso porque tinha que delegar
a outras pessoas muitos cuidados.
Mas
sabia que seria assim. Amamentei tranquilamente, mas precisava de
alguém do meu lado o tempo todo. Chorei, tive medo e não posso
negar que, às vezes, fico triste pelo que não posso fazer por ela.
Mas todo o resto que consigo fazer é tão bom e tão maior...
Todos
os dias descubro formas de estar mais perto da minha filha. Não
troco fraldas, não consigo dar banho. As minhas mãos nesses
momentos são as do Jair ou as da Vera, a babá, mas estou sempre ao
lado. Consigo dar mamadeira, brinco com ela.
UMA
MATERNIDADE ESPECIAL
A
Manu se acostumou a brincar comigo sem estar no meu colo. Coloco-a
sobre a mesa e beijo, abraço, aperto. A Manu já bate palmas com as
mãozinhas fechadas, como as minhas, que não consigo mais abrir.
Parece
que ela sabe. Se o Jair chega perto dela, estica os braços e pede
colo, pede para sair do berço. Comigo, não. Ela pode até reclamar
que cansou da brincadeira, mas não me pede o que não posso dar.
E
fica louca com a minha cadeira! É lindo ver que a Manu escuta,
reconhece o barulho do motor da cadeira e sabe quando estou chegando.
Sei
que o que ficou do acidente é para o resto da minha vida.
E
também que, independentemente de quem seja, sempre vou precisar de
alguém ao meu lado.
No
meio da noite, se estiver em uma posição desconfortável, vou
precisar acordar o Jair e pedir:
“Amor,
me vira?”.
E
ele vai estar ali para me virar.
Sempre
fomos muito unidos, mas hoje nossa ligação aumentou.
Quando
a Manu crescer mais um pouco, vou fazer uma pós-graduação e voltar
a trabalhar.
Mas,
agora, o que eu mais quero é ver a minha filha caminhando para mim,
correndo em direção à minha cadeira, subindo nela e dançando com
a gente.”
Fonte:
- www.apabb.org.com
Infelizmente ainda existe muito preconceito das pessoas em relação as mulheres deficientes quando se fala no direito a maternidade, é vista como um absurdo, mas para a medicina é um caso normal, desde que a paciente esteja em perfeito estado de saúde eles não vêem nenhum empecilho e as acompanham normalmente em seu pré natal.
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