Dra.
Lúcia Helena Mercuri Granero é médica fisiatra, coordenadora do
Ambulatório de Bloqueio Químico do Hospital São Paulo da Escola
Paulista de Medicina (UNIFESP).
Toxina
botulínica é um composto altamente venenoso.
Segregada
pelas bactérias Clostridium
botulinum e
Clostridium
parabotulinum,
que se desenvolvem em enlatados ou nos alimentos mal conservados, já
causou inúmeros envenenamentos.
Ao
penetrar no organismo, ela provoca náuseas, mal-estar, vômitos e
fraqueza muscular progressiva. Caracteristicamente, as pálpebras
caem (ptose palpebral).
O
comprometimento da contração muscular é responsável pela falta de
ar e dificuldade de deglutição que acometem o paciente.
Quando
a quantidade de toxina é muito grande, a pessoa morre em pouco
tempo.
Para
entender o que acontece, é preciso lembrar que, entre o músculo e
os nervos, há uma placa responsável pela transmissão do estímulo
nervoso que produz a contração muscular.
A
toxina botulínica age nessa placa, dificultando a transmissão do
estímulo e levando ao relaxamento da musculatura.
É
dessa propriedade fisiológica que advém sua utilidade terapêutica.
Nos
últimos vinte anos, foram apresentados vários trabalhos mostrando
que, numa concentração bem baixa, ela pode ser usada para relaxar
músculos contraídos, sintoma de patologias como as lesões
cerebrais.
Todos
conhecem o efeito da toxina botulínica, quando usada com finalidade
estética para atenuar rugas do rosto.
A
musculatura relaxa e a expressão fica menos contraída.
Esse
é, porém, seu uso marginal, porque há outros muito mais
importantes para garantir a qualidade de vida de alguns pacientes.
USO
TERAPÊUTICO
Drauzio
– A aplicação da toxina botulínica com finalidade terapêutica
começou há mais ou menos 20 anos. Em que casos ela foi
primeiramente utilizada?
Lúcia
Helena Mercuri Granero –
O uso terapêutico da toxina botulínica teve início na área da
oftalmologia.
No
começo da década de 1980, Dr. Scott, um oftalmologista, publicou o
primeiro trabalho sobre o uso dessa toxina para relaxamento de
músculos oculares com resultado eficaz no tratamento de estrabismo.
Outros
estudos se seguiram e, em 1989, foi publicado um trabalho
mostrando que ela podia ser usada no tratamento dos distúrbios de
movimento, especificamente nos casos de espasticidade (sequela de
lesões do sistema nervoso central que provoca descontrole do tônus
muscular tendendo à rigidez e à dificuldade de movimentos).
Caracteristicamente,
esse problema ocorre após traumatismo craniano, lesões medulares ou
congênitas, como no caso da paralisia cerebral, uma encefalopatia
provocada pela falta de oxigenação na fase perinatal ou intraútero.
Como
consequência da lesão, surge distúrbio do tônus muscular.
O
músculo se torna muito mais excitável, extremamente contraturado e
contraído, o que provoca alteração dos movimentos e da postura.
Drauzio
– Vamos pegar a situação clássica da pessoa que teve derrame
cerebral (AVC) e ficou com contraturas no antebraço. A toxina age
anulando a contração dos músculos que puxam o braço a fim de que
eles relaxem. Qual é a técnica de aplicação?
Lúcia
Helena Mercuri Granero –
A técnica foi sendo aprimorada no decorrer dos anos.
Hoje,
está bem estabelecida e funciona adequadamente.
A
toxina botulínica liofilizada vem em frascos e, depois de diluída
em soro fisiológico, é aspirada numa seringa e aplicada no
paciente.
Se
for um adulto que suporta algumas punções, pode ser injetada
através de uma agulha bem fininha em braços, pernas, tronco e
também na face, não para uso estético, mas para tratar distonias
da face e do pescoço, ou seja, os espasmos nervosos faciais,
vulgarmente conhecidos como tiques.
Drauzio
– Dói?
Lúcia
Helena Mercuri Granero –
Dói, como qualquer outra injeção.
Dói
o trauma da agulha, a perfuração que o provocou.
Na
verdade, temos de procurar músculos profundos para introduzir boa
parte da agulha e esse procedimento é doloroso.
Os
pacientes relatam que a dor não provém do líquido em si, mas de
sua acomodação entre as fibras de tecido.
No
entanto, é uma dor bastante suportável e eles aguentam fazer várias
punções no mesmo dia.
Drauzio
– Em média, quantas doses vocês aplicam em cada paciente?
Lúcia
Helena Mercuri Granero –
Varia muito de um caso para outro.
Algumas
toxinas são envasadas em frascos de 100 unidades e outras, em
frascos de 500 unidades.
O
número de frascos prescritos vai depender do número de pontos a
serem tratados e da quantidade total de unidades necessárias.
Por
exemplo, pacientes com sequelas de derrame cerebral, que apresentam o
padrão típico de membro superior flexionado e perna mais
distendida, requerem doses mais altas, porque o comprometimento
abrange muitos músculos.
Casos
mais leves, como o pé equino-varo em que só o pé está em posição
alterada, as doses são menores, porque é menor o número de
músculos a serem tratados.
Drauzio
– Que profissionais são treinados para fazer as injeções?
Lúcia
Helena Mercuri Granero
– Dentro das especialidades médicas, o profissional que cuida da
reabilitação do portador de deficiência é o fisiatra, mas existem
profissionais de áreas afins, como a neurologia e a ortopedia, que
também utilizam a toxina botulínica com finalidade terapêutica.
Drauzio
– De qualquer modo, os profissionais precisam ser muito bem
treinados…
Lúcia
Helena Mercuri Granero –
Sem dúvida. O treinamento deve ser feito em centros que
reconhecidamente trabalham com essa terapêutica, com experiência
comprovada, casuística grande e utilizado por profissionais
extremamente habilitados, porque a toxina botulínica pode provocar
efeitos colaterais graves.
INDICAÇÕES
a)
Sequelas de lesões encefálicas
Drauzio
– Em que situações clínicas a toxina botulínica é utilizada
com a finalidade de provocar relaxamento muscular?
Lúcia
Helena Mercuri Granero –
Ela é utilizada para tratar as sequelas de lesões do sistema
nervoso central.
Atualmente,
as mais comuns são as provocadas por lesões encefálicas adquiridas
por causa de traumatismos de crânio e pelas provocadas por derrames
cerebrais e paralisia cerebral.
Drauzio
– Você poderia explicar o que é paralisia cerebral e quem pode
ser acometido por ela?
Lúcia
Helena Mercuri Granero – A
paralisia cerebral é provocada por uma lesão que ocorre numa fase
em que o sistema nervoso central da criança ainda está em formação.
Didaticamente,
essa fase é dividida em fase pré-natal, perinatal e pós-natal, uma
vez que a gestante pode ter algum tipo de intercorrência durante a
gestação ou no momento do parto que vai acarretar a lesão
cerebral, ou a lesão pode ocorrer depois do nascimento.
Por
exemplo, partos complicados ou má assistência na hora do nascimento
podem provocar falta de oxigenação (anóxia) do feto, o que lhe
traz sofrimento e pode ser causa de lesão cerebral.
Depois
do nascimento, meningite, traumas, crises convulsivas e certas
doenças genéticas só diagnosticadas após o parto são outras
causas de lesões cerebrais responsáveis por distúrbios do
movimento e do tônus muscular, que deixam a criança rígida.
Drauzio
– Além desses, que outros problemas podem provocar lesões que
afetam a musculatura e provocam contrações?
Lúcia
Helena Mercuri Granero –
Lesões medulares por fratura, acidentes – motociclísticos,
automobolísticos ou por arma de fogo – e doenças degenerativas,
como a esclerose múltipla, podem provocar rigidez muscular e o
tratamento feito com toxina botulínica traz benefícios para o
paciente.
Nesses
casos, é preciso avaliar o padrão de rigidez que está interferindo
com a qualidade de movimento ou com a postura e atuar sobre esses
músculos.
b)
Esclerose múltipla
Drauzio
– A esclerose múltipla é uma doença em que o sistema imunológico
ataca a bainha de mielina que envolve os nervos e isso altera a
condução do estímulo nervoso do nervo para o músculo.
Essa
doença evolui em surtos, de forma geralmente lenta.
Em
que fase da doença é indicada a toxina botulínica?
Lúcia
Helena Mercuri Granero –
A indicação depende mais do quadro motor do que da fase da doença
em que o paciente está.
Em
geral, quem encaminha esse paciente para o fisiatra é o
neurologista, dizendo:
”Tentei
tratar a rigidez, a espasticidade, com medicação oral, sem sucesso.
Talvez
um tratamento local com toxina botulínica consiga promover o
relaxamento muscular desejado”.
Portanto,
a fase da doença não tem relação direta com a utilização dessa
toxina.
Se
o paciente tem surtos repetidos e diminuição progressiva da
qualidade de movimentos e da independência pessoal porque a
rigidez está se instalando, o uso da toxina botulínica pode
prevenir deformidades ou outras complicações.
c)Mal
de Parkinson
Drauzio
– E no mal de Parkinson, doença que provoca o clássico tremor de
extremidades?
Lúcia
Helena Mercuri Granero –
A doença de Parkinson vem sendo estudada para avaliar o real
benefício que a toxina botulínica pode representar.
No
entanto, alguns trabalhos que temos desenvolvido mostram que esses
benefícios existem do ponto de vista funcional, desde que o quadro
seja bem avaliado.
Às
vezes, o parkinsoniano relata dificuldade em locomover-se, em trocar
o passo e o exame precisa ser minucioso para descobrir o que está
interferindo nessas ações a fim de atuar exatamente em cima dos
músculos comprometidos.
Embora
a doença de Parkinson ainda não seja uma indicação clássica, o
tema está sendo pesquisado, pois a toxina botulínica tem-se
mostrado eficiente no tratamento de muitas patologias diferentes.
d)Tiques
nervosos
Drauzio
– Você mencionou rapidamente os tiques nervosos. Quais deles podem
ser tratados com toxina botulínica?
Lúcia
Helena Mercuri Granero
– Muitos pacientes têm tiques, isto é, espasmos musculares
faciais basicamente na região dos olhos (piscamentos) ou da boca
(repuxamentos).
Do
ponto de vista medicamentoso e psicoterapêutico, isso é muito
difícil de ser tratado. Como a toxina botulínica enfraquece a
musculatura, os tiques são atenuados.
Drauzio
– Relaxando os músculos, ela não provoca assimetria entre as duas
metades do rosto?
Lúcia
Helena Mercuri Granero –
É preciso analisar muito bem o caso para isolar os grupos de
músculos que estão atuando no careteamento e lembrar que o lado com
espasmos está com hiperatividade.
O
objetivo é diminuir essa atividade aproximando-a do nível da outra
hemiface.
Como
as doses são bem estudadas, a assimetria não se mostra importante e
o resultado é bem próximo do que se considera bom.
e)
Cefaleias
Drauzio
– No caso das cefaleias, em que circunstâncias é indicada a
toxina botulínica?
Lúcia
Helena Mercuri Granero –
A toxina presta-se para o tratamento das cefaléias tensionais,
relacionadas com o estado de tensão e sobrecarga, e das
cervicogênicas, resultantes de contratura na região cervical.
De
tratamento difícil, a profilaxia que se fazia antes deixava o
paciente bem por uns tempos, mas depois surgiam crises intensas.
O
uso da toxina botulínica, nesses casos, traz melhores resultados do
que o tratamento medicamentoso e prolonga o espaço entre as crises.
Drauzio
– As cefaleias cervicogênicas não respondem aos analgésicos
comuns, mas, em geral, respondem aos anti-inflamatórios. Resultantes
da contração involuntária da musculatura cervical, elas exigem
diagnóstico bastante preciso para que a toxina possa ser usada.
Lúcia
Helena Mercuri Granero –
É verdade.
À
semelhança de qualquer outra terapêutica, a boa indicação garante
parte do sucesso do tratamento com a toxina botulínica.
f)
Hiperidrose
Drauzio
– A toxina botulínica também pode ajudar pessoas com hiperidrose,
isto é, portadoras de sudorese profusa nas mãos, axilas etc.?
Lúcia
Helena Mercuri Granero –
Não atuo exatamente nessa área, mas os dermatologistas têm-se
referido aos bons resultados do tratamento com toxina botulínica nas
hiperidroses axilares, palmares e plantares.
A
melhora é boa e perdura por tempo prolongado, em média 5 ou 6
meses.
DURAÇÃO
DO EFEITO
Drauzio
– Nas espasticidades, quanto tempo dura o efeito benéfico da
toxina botulínica?
Lúcia
Helena Mercuri Granero –
Vários fatores podem interagir para que o efeito dure mais ou menos
tempo.
Como
sou da área de reabilitação, entendo que o paciente com sequela e
portador de deficiência tem de fazer tratamento reabilitacional do
momento em que a sequela apareceu até o final da vida.
Hoje,
não mais se discute que o paciente espástico, rígido, tem de fazer
um trabalho de alongamento muscular e de reeducação do movimento
para não gerar alterações nas estruturas articulares nem
musculares.
Em
geral, o portador de espaticidade ou déficit motor, para andar ou
movimentar o membro superior, ou mesmo para corrigir o
posicionamento, precisa de um programa de atividades físicas e de
acompanhamento terapêutico simultaneamente.
Drauzio
– Quer dizer que a aplicação da toxina botulínica não exclui a
necessidade dos outros tratamentos?
Lúcia
Helena Mercuri Granero –
De forma nenhuma. Isso já está muito bem estabelecido.
O
paciente precisa ser tratado com outras terapias ou, minimamente,
precisa fazer exercício no domicílio para alongamento muscular e
reeducação do movimento.
Drauzio
– De quanto em quanto tempo, a aplicação deve ser repetida?
Lúcia
Helena Mercuri Granero –
Em média, varia de 4 a 6 meses.
PERGUNTAS
ENVIADAS POR E-MAIL
Simone
Vieira – São Paulo (SP) – A toxina botulínica pode bloquear a
sudorese por vários meses?
Lúcia
Helena Mercuri Granero –
Nos casos de sudorese abundante, o efeito é mesmo de meses e, em
geral, dura de 4 a 6 meses.
Camila
Guerreiro da Silva – Porto Alegre (RS) – Com o tempo o uso da
toxina pode causar danos para saúde?
Lúcia
Helena Mercuri Granero –
Nenhum estudo demonstrou que as aplicações repetidas tragam
sequelas ou danos para a saúde.
O
que se pode dizer é que o fato de ser uma toxina estranha ao
organismo, ele possa produzir anticorpos antitoxina botulínica.
Se
isso acontecer, o paciente não responderá mais ao tratamento com
essa substância.
Felizmente,
a ocorrência desse tipo de imunidade criada contra a toxina é
baixíssima.
Aída
Diniz Campos –São Paulo (SP) –
Até
que ponto a toxina botulínica melhora os sintomas do mal de
Parkinson?
Lúcia
Helena Mercuri Granero –
Não está bem estabelecido se a toxina botulínica é boa indicação
para tratar o mal de Parkinson.
O
paciente precisa ser bem avaliado para verificar em que medida o uso
da toxina poderá beneficiá-lo, melhorando a mobilidade e deixando
os movimentos mais soltos e leves e a postura menos rígida.
Drauzio
– O tratamento com toxina botulínica é caro. É possível o
paciente ser tratado pelo SUS?
Lúcia
Helena Mercuri Granero –
É possível. Em São Paulo (SP), a população dispõe de centros de
referência para o uso terapêutico da toxina botulínica onde será
atendida pelo SUS.
Eles
existem no Hospital São Paulo da Faculdade Paulista de Medicina
(UNIFESP) onde trabalho, no Hospital das Clínicas da USP, na Santa
Casa e na AACD.
Mas
não é só em São Paulo que esse serviço existe.
A
toxina botulínica está disponível no Brasil inteiro, de norte a
sul, em centros de referência em hospitais públicos e, cada vez
mais, têm sido abertos novos centros, em geral em hospitais escola,
com médicos treinados e especialistas em áreas como neurologia,
ortopedia e fisiatria.
Fonte:
- drauziovarella.com.br
Muito interessante e esclarecedora esta entrevista do dr Drauzio Varella nela podemos ver as indicações e as contra indicações da utilização da toxina botulínica, que por sinal ela vem sendo utilizada em inúmeras patologias a anos com muito sucesso, principalmente na area de reabilitação; mas também nos alerta para se ter muito cuidado com o uso por pessoas que desconhece seus efeitos e causas e nem especialização no seu manuseio, podendo assim trazer prejuízo na saúde do paciente. Somente profissionais especializados estão aptos para utiliza-las com sucesso, é preciso ficar atento.
ResponderExcluirJusto o que eu procurava sobre toxina botulínica. Obrigada!
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