Acreditar em si mesmo

Acreditar em si mesmo

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Movimento político das pessoas com deficiência: reflexões sobre a conquista de direitos.

Foto da Dra. Izabel Maior.
*Izabel Maria Madeira de Loureiro Maior.

Equipe Inclusive - 1ª parte.


Movimento político das pessoas com deficiência: reflexões sobre a conquista de direitos.


RESUMO

O artigo contextualiza a conquista de direitos e autonomia pelas pessoas com deficiência no Brasil ante os fatos históricos e mudanças conceituais da deficiência.

São apresentados os principais marcos internacionais adotados pela ONU que influenciaram o surgimento do movimento político dos brasileiros com deficiência até a ratificação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, com equivalência constitucional em 2009.

Conceituam-se os modelos biomédico e social da deficiência, correspondentes à integração e à inclusão, os quais se diferenciam pela mudança de foco dos impedimentos individuais para a discriminação e a falta de acessibilidade impostas pela sociedade.

Avalia-se a atuação direta das pessoas com deficiência na inserção de seus direitos na Constituição de 1988, referencial para a elaboração das leis, a implementação das políticas afirmativas, da educação inclusiva e dos recursos de acessibilidade e tecnologia assistiva.

Avaliam-se autonomia, vida independente e apoios como princípios para a equiparação de oportunidades.

Discutem-se as estratégias para implementar e fiscalizar o cumprimento da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, surgida com o propósito de adequar a legislação e as políticas públicas às obrigações contidas na Convenção da ONU.

Conclui-se que novos avanços da luta por direitos dependem do fortalecimento das associações de pessoas com deficiência, promoção de lideranças, maior participação e autonomia para mulheres com deficiência, pessoas com deficiência intelectual, múltipla e transtorno do espectro autista, ainda sub-representadas nos espaços sociais.

As pessoas com deficiência representam 15% da população mundial, cerca de um bilhão de habitantes, conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS), no Relatório Mundial sobre a Deficiência, publicado em 2011.

Trata-se da maior minoria do planeta que sobrevive em extrema desigualdade social, como analfabetismo, desemprego e baixa renda (SÃO PAULO, 2012).

Essa realidade impacta os indicadores de desenvolvimento sustentável de forma negativa, razão suficiente para que o segmento social das pessoas com deficiência tenha seus direitos e necessidades específicas levadas na agenda política de todos os países.

No Brasil, o Censo IBGE 2010 aferiu que 23,9% da população, aproximadamente 45 milhões de pessoas, mencionaram apresentar alguma dificuldade funcional.

Nesse total estão considerados todos os tipos e graus de deficiência de acordo com o desempenho nas atividades e domínios pesquisados: alguma dificuldade, grande dificuldade ou não ser capaz de caminhar e subir escadas, enxergar, ouvir ou apresentar deficiência mental/intelectual (IBGE, 2012).

De acordo com Carvalho, é importante notar que, ao contrário de outros grupos sociais visivelmente homogêneos e com necessidades compartilhadas, as pessoas com deficiência têm na própria diversidade uma de suas mais evidentes características (CARVALHO, 2012).

A presença de diferenças entre os seres humanos tem sido, por séculos, motivo de eliminação, exclusão e formas diversas de segregação das pessoas com deficiência, tomadas como risco à sociedade, como doentes e como incapazes.

Em todas essas situações manifesta-se a opressão daqueles que detêm o poder sobre os indivíduos em situação de vulnerabilidade.

Da invisibilidade à convivência social, houve longa trajetória representada pelas medidas caritativas e assistencialistas, que mantiveram as pessoas com deficiência isoladas nos espaços da família ou em instituições de confinamento (MAIOR, 2016).

A conquista de direitos pelas pessoas com deficiência é recente e pode ser dividida em duas fases distintas.

Inicia-se pelo envolvimento e condução do processo pelas famílias e por profissionais dedicados ao atendimento e, posteriormente, pela participação direta das próprias pessoas com deficiência, apoiadas por familiares.

Em ambos os momentos predomina a atuação das associações da sociedade civil que lutam por espaço para as pessoas com deficiência na agenda política.

Da tutela à autonomia, o movimento social procura vencer a discriminação, a desvalorização e a falta de atenção por parte dos governos (MAIOR, 2015).

A história das pessoas com deficiência no Brasil do século XIX caracteriza-se pela educação especial de cegos e de surdos em internatos, repetindo o cenário europeu.

Nessa época foi introduzido o sistema Braille de escrita para os cegos e, entre 1880 e 1960, os surdos foram proibidos de usar a língua de sinais para não comprometer o aprendizado compulsório da linguagem oral (LANNA JÚNIOR, 2010).

Esse fato representa no Brasil a mais emblemática dominação da cultura hegemônica dos ouvintes sobre os surdos, impedidos de se desenvolverem em sua cultura natural.

No início do século XX estabeleceram-se as escolas especiais para crianças com deficiência mental (atualmente reconhecida como deficiência intelectual) em redes paralelas ao ensino público, devido à omissão do Estado.

A educação especial representou um avanço para a época e foi introduzida principalmente por iniciativa das associações Pestalozzi (nome do criador do método) e, posteriormente, pelas Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae).

Os termos excepcionais e portadores de necessidades especiais eram usados e, embora anacrônicos e incorretos, persistem na sociedade, particularmente por serem repetidos pela mídia.

As pessoas com deficiência física (antes chamadas de deficientes físicos) eram atendidas na área da saúde, em centros de reabilitação mantidos por iniciativa não governamental.

Esses centros surgiram a partir da epidemia de poliomielite nos anos 1950 e 1960, quando foram adotadas formas de terapia desenvolvidas a partir da II Guerra Mundial.

No âmbito governamental, mantiveram-se iniciativas assistencialistas divorciadas das políticas públicas existentes para a população em geral, sob o comando da Legião Brasileira de Assistência (LBA), até meados da década de 1990.

Esse tipo de atendimento corresponde ao modelo biomédico da deficiência, o qual interpreta a deficiência como consequência de uma doença ou acidente, que gera alguma incapacidade a ser superada mediante tratamento de reabilitação.

O modelo está vinculado à integração social e aos esforços de normalização das pessoas com deficiência para atenderem aos padrões de desempenho e estética exigidos pela sociedade.

O modelo tem como foco a limitação funcional que se encontra na pessoa, desconsiderando as barreiras presentes no contexto social.

O modelo (bio) médico da deficiência demonstra a resistência da sociedade em aceitar as mudanças em suas estruturas e atitudes (SASSAKI, 2003).

As políticas públicas integracionistas destinadas às pessoas com deficiência são específicas, isoladas e habitualmente restritas à saúde, assistência social e educação especial em escolas segregadas.

Na integração, as pessoas com deficiência são representadas pelos profissionais e familiares, sem voz e sem atuação direta nos assuntos referentes aos seus interesses.

A partir da consolidação dos estudos sobre a deficiência, na década de 1960 (DINIZ, 2009) cresceu o movimento de reivindicação de direitos e a luta das pessoas com deficiência para serem reconhecidas como protagonistas em suas vidas.

Surgiu assim o modelo social da deficiência em contraposição ao modelo meramente biológico.

O modelo social baseia-se nas condições de interação entre a sociedade e as pessoas com limitações funcionais.

Acima de tudo, as pessoas com deficiência são sujeitos de direitos, com autonomia e independência para fazer suas escolhas, contando com os suportes sociais que se fizeram necessários (MAIOR, 2016).

O modelo social visa à transformação das condições existentes mediante políticas públicas inclusivas.

Segundo Sassaki, no modelo social da deficiência cabe à sociedade eliminar todas as barreiras físicas, programáticas e atitudinais para que as pessoas possam ter acesso aos serviços, lugares, informações e bens necessários ao seu desenvolvimento pessoal, social, educacional e profissional (SASSAKI, 2003).

Nesse modelo, as políticas universais contemplam as especificidades do segmento das pessoas com deficiência (BERMAN-BIELER, 2005).

Ao final dos anos 1970, no Brasil cresceu a consciência que resultaria no movimento político das pessoas com deficiência.

Evidenciou-se o contraste entre instituições tradicionais para atendimento e associações de pessoas com deficiência (LANNA JÚNIOR, 2010), elevadas ao protagonismo e à emancipação. Entretanto, o cenário da integração-inclusão ainda persiste nos dias atuais.

A fase heróica do movimento das pessoas com deficiência coincide com a abertura política, quando reunidas em Brasília em 1980, as associações construíram a pauta comum de reivindicações de seus direitos.

O 1° Encontro Nacional fez nascer o sentimento de pertencimento a um grupo com problemas coletivos e, portanto, as batalhas e as conquistas deveriam visar ao espaço público (SÃO PAULO, 2011).

Segundo Figueira, “se até aqui a pessoa com deficiência caminhou em silêncio, excluída ou segregada em entidades, a partir de 1981, Ano Internacional da Pessoa Deficiente, promulgado pela ONU, passou a se organizar politicamente” (FIGUEIRA, 2008).

Em depoimento, Sassaki conta que “pela primeira vez surgiu a palavra pessoa para conferir dignidade e identidade ao conjunto das pessoas deficientes” (LANNA JÚNIOR, 2010).

Na década de 1980, as conquistas mais importantes correspondem à atuação no processo constituinte, quando não se permitiu uma cidadania separada para as pessoas com deficiência e sim a inserção dos seus direitos nos diversos capítulos da Constituição de 1988, conforme desejo dos ativistas do movimento.

Cerca de 15 anos depois, o movimento culmina com a ratificação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência pelo Brasil.

A participação direta e efetiva dos indivíduos não foi fruto do acaso, mas decorre do paulatino fortalecimento deste grupo populacional, que passou a exigir direitos civis, políticos, sociais e econômicos (GARCIA, 2011).

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (BRASIL, 2009) propôs o conceito de deficiência que reconhece a experiência da opressão sofrida pelas pessoas com impedimentos.

O novo conceito supera a ideia de impedimento como sinônimo de deficiência, reconhecendo na restrição de participação o fenômeno determinante para a identificação da desigualdade pela deficiência (DINIZ, 2009).

É importante ressaltar que a convenção adotada pela ONU em 2006 é resultado da mobilização internacional das pessoas com deficiências.

No Brasil, o tratado foi incorporado à legislação com marco constitucional, segundo o Decreto 6.949/2009 e, como tal, seus comandados determinam a mudança conceitual da deficiência e da terminologia para pessoas com deficiência (BRASIL, 2009).

A deficiência é um conceito em evolução, de caráter multidimensional, e o envolvimento da pessoa com deficiência na vida comunitária depende de a sociedade assumir sua responsabilidade no processo de inclusão, visto que a deficiência é uma construção social.

Esse novo conceito não se limita ao atributo biológico, pois se refere à interação entre a pessoa e as barreiras ou os elementos facilitadores existentes nas atitudes e na provisão de acessibilidade e de tecnologia assistiva como resultado das políticas públicas (MAIOR, 2016).

Em outras palavras, o conceito de pessoa com deficiência presente na convenção supera as leis tradicionais que normalmente baseiam-se no aspecto clínico da deficiência.

As limitações físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais são consideradas atributos das pessoas, que podem ou não gerar restrições para o exercício dos direitos, dependendo das barreiras sociais e culturais que impeçam a participação dos cidadãos com tais limitações (FONSECA, 2007).

A mesma pessoa com limitação funcional encontrará condições para realizar atividades e participar na comunidade na proporção direta dos apoios sociais existentes. Isso significa dizer que o meio é responsável pela deficiência imposta às pessoas.

Entende-se, portanto, que deficiência é uma questão coletiva e da esfera pública, sendo obrigação dos países proverem todas as questões que efetivamente garantam o exercício dos direitos humanos.

Por exemplo, na concepção de novos espaços, políticas, programas, produtos e serviços, o desenho deve ser sempre universal e inclusivo, para que não mais se construam obstáculos que impeçam a participação das pessoas com deficiência (LOPES, 2014).

No âmbito federal, foi criada em 1986 a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (Corde), responsável pela Política Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência e, em 1999, surgiu o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade).

A partir de 2006 foram realizadas as Conferências dos Direitos da Pessoa com Deficiência, que reúnem ativistas, técnicos e familiares envolvidos com inclusão social.

A noção de diversidade humana, igualdade de direitos e respeito às diferenças caracterizam o paradigma dos direitos humanos, modelo que assegura, às pessoas com deficiência, dignidade, autonomia e direito de fazer suas escolhas.

A nova percepção motivou a mudança da Corde para a Secretaria dos Direitos Humanos em 1995.

Em 2009 a coordenadoria deu lugar à Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, mantida na estrutura do Ministério dos Direitos Humanos em 2017.

Cabe à secretaria propor e avaliar as leis e decretos, articular as políticas setoriais, implementar a agenda de inclusão e dar apoio aos entes federados e organizações não governamentais.

O conjunto das leis brasileiras destinadas aos direitos das pessoas com deficiência é reconhecido como um dos mais abrangentes do mundo.

Antes da Constituição Federal de 1988 não havia normas sobre as pessoas com deficiência, à exceção de regulamentos da Educação Especial e da Legião Brasileira de Assistência (LBA).

Os direitos gerais e específicos do segmento encontram-se distribuídos em vários artigos constitucionais.

A política de inclusão, a acessibilidade, as garantias para surdos, cegos e pessoas com baixa visão têm leis próprias.

Outra parte importante dos direitos está inserida, de forma transversal, na legislação geral da saúde, educação, trabalho, proteção social, cultura, esporte, etc.

As leis mais recentes apresentam o recorte referente à pessoa com deficiência, como, por exemplo, nos programas habitacionais públicos e na política de mobilidade urbana com acessibilidade (MAIOR, 2015).

A primeira lei federal abrangente sobre as pessoas com deficiência é a Lei 7.853/1989 (regulamentada pelo Decreto 3.298/1999).

A lei dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (Corde) e institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público e define crimes.

A acessibilidade é tratada nas Leis 10.048 e 10.098/2000 e no Decreto 5296/2004, que regulamentam a prioridade de atendimento às pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida (idosos, gestantes) e estabelece normas para a promoção da acessibilidade.

Esse decreto é o mais conhecido entre as pessoas com deficiência porque disciplina as condições que impactam sua vida cotidiana.

O decreto trata da acessibilidade amplamente: acesso aos espaços públicos e edificações, moradias, bens culturais imóveis, todos os modais de transportes coletivos e terminais de embarque e desembarque.

Da mesma forma, a legislação assegura a acessibilidade na comunicação e informação, telefonia fixa e móvel, legendas, janela com intérprete de Libras, audiodescrição de imagens para cegos na televisão, no cinema, no teatro, em campanhas publicitárias e políticas; sites acessíveis e tecnologia assistiva (equipamentos que conferem autonomia, desde talher adaptado à embreagem manual de carro ou o programa computacional de leitura da tela para cegos.

A Lei 10.436/2002 é específica para a pessoa surda e tornou oficial a Língua Brasileira de Sinais (Libras), mantido o português escrito como segunda língua.

É obrigatória a capacitação dos agentes públicos em Libras.

O Decreto 5626/2005 define a educação bilíngue, a formação de tradutores e guias-intérpretes de Libras, cuja profissão foi regulamentada pela Lei 12.319/2010, permitindo concursos públicos e contratação desses profissionais.

As pessoas cegas ou com baixa visão, após a Lei 11.126/2005 e o Decreto 5904/2006, podem ingressar e permanecer com o cão-guia em ambientes e transportes coletivos, em lugar preferencial demarcado.

A política afirmativa mais importante para as pessoas com deficiência é o acesso ao mercado de trabalho. A Lei 8.112/1990 determinou a reserva de cargos nos concursos públicos e a Lei 8.213/1991 estabeleceu a reserva de 2 a 5% dos cargos nas empresas com 100 ou mais empregados, para beneficiários reabilitados e pessoas com deficiência capacitadas profissionalmente.


continua na próxima postagem









Um comentário:

  1. Sempre é bom e útil estar ciente dos nossos direitos, e assim podermos saber a quem procura quando precisarmos fazer com que esse seja cumprido nas horas em que precisarmos deles para a nossa defesa. Jamais devemos ficar calados, porque existe leis que nos amparam e defende, vamos sim requerê-las e fazer com que essas sejam cumpridas para o nosso benefícios.

    ResponderExcluir